Consolaçam ás tribulaçoens de lsrael de Samuel Usque*
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"Vi qe em Lixboa se alçaram
Pouo baixo & villãos
Contra os nouos Christãos
Mais de quatro mil matarã
Dos qe ouuerão nas mãos (...)"
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Garcia de Resende (1470 - 1536)
Miscellania & Variedades de Histórias, costumes, casos & cousas que em seu tempo aconteceram
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Faltam 24 dias para que se cupram 500 anos sobre o Progrom* (as matanças) de Lisboa. Apelo aqui à mobilização da blogosfera em torno da evocação do próximo 19 de Abril. Apoio, nesse sentido, a oportuna proposta do Nuno Guerreiro:
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"No dia 19 de Abril, vão à Baixa de Lisboa e no Rossio acendam uma vela simbólica por cada uma das vítimas. Quatro mil velas que iluminem a memória".
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Como escrevi aqui na passada quinta-feira, um país não se pode mutilar e continuar incólume e em silêncio face a si mesmo. Este blogue tem feito eco desta causa (não creio, de facto, que se trate de uma "micro-causa") há já mais de dois anos.
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A 15 de Janeiro de 2004, escrevia-se aqui no Miniscente:
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Um certo mutismo português adora esquecer os labirintos judaicos de Amesterdão, de Antuérpia, de Istambul ou do Recife que, afinal, lhe saíram da sua própria carne. Por que razão será muda a história oficial portuguesa acerca da implosão judaica de finais de século XV e inícios do século XVI? Independentemente de tal mudez, a verdade é que não há português que não traga consigo um pouco de Israel e, no entanto, parece disfarçá-lo com uma leviana saudade da escuridão, com uma timidez pessoana e quase mitológica, com uma ignorância tétrica e, às vezes, com uma apaixonada tentação pela erradicação memorial (tantas vezes pressionada pelos fluxos ideológicos de conjuntura). É como se, na frente de um Portugal marmóreo e cristalizado, apenas ficasse o mar e as suas lendas a sós, apenas ficasse a imagem passada de um século de ouro, apenas ficasse a euforia das Europálias, das Expos, das Décimas sétimas, das N Capitais da cultura e das várias Exposições do mundo português. É como se, em todas estas cenografias da exaltação lusa, nada sobrasse do vestígio da alma judaica arrancada à nossa própria alma. Que auto-imagem celebrará tal amputação, ou tal compaixão desprovida de rosto?
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A 30 de Janeiro, também de 2004, voltava-se a escrever aqui no Miniscente:
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Um certo mutismo português adora esquecer os labirintos judaicos de Amesterdão, de Antuérpia, de Istambul ou do Recife que, afinal, lhe saíram da sua própria carne. Por que razão será muda a história oficial portuguesa acerca da implosão judaica de finais de século XV e inícios do século XVI? Independentemente de tal mudez, a verdade é que não há português que não traga consigo um pouco de Israel e, no entanto, parece disfarçá-lo com uma leviana saudade da escuridão, com uma timidez pessoana e quase mitológica, com uma ignorância tétrica e, às vezes, com uma apaixonada tentação pela erradicação memorial (tantas vezes pressionada pelos fluxos ideológicos de conjuntura). É como se, na frente de um Portugal marmóreo e cristalizado, apenas ficasse o mar e as suas lendas a sós, apenas ficasse a imagem passada de um século de ouro, apenas ficasse a euforia das Europálias, das Expos, das Décimas sétimas, das N Capitais da cultura e das várias Exposições do mundo português. É como se, em todas estas cenografias da exaltação lusa, nada sobrasse do vestígio da alma judaica arrancada à nossa própria alma. Que auto-imagem celebrará tal amputação, ou tal compaixão desprovida de rosto?
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A 30 de Janeiro, também de 2004, voltava-se a escrever aqui no Miniscente:
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Oxalá, daqui a dois anos, em 2006, o estado português saiba homenagear a parte mais esquecida do seu corpo nacional. Fazê-lo seria, para além de uma questão de justiça, sobretudo uma desafio vital para a nossa própria auto-imagem e orgulho próprio. Vamos, então, aos factos históricos (fonde Rua da Judiaria):
Oxalá, daqui a dois anos, em 2006, o estado português saiba homenagear a parte mais esquecida do seu corpo nacional. Fazê-lo seria, para além de uma questão de justiça, sobretudo uma desafio vital para a nossa própria auto-imagem e orgulho próprio. Vamos, então, aos factos históricos (fonde Rua da Judiaria):
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"O número de mortos resultantes do progrom de Lisboa, ocorrido em Abril de 1506, embora não seja certo, aponta para cerca de quatro mil pessoas (cripto-judeus / cristãos-novos) chacinadas na sequência de motins antijudaicos incitados por frades dominicanos. No Rossio, contam Samuel Usque e Damião de Góis, o chão ficou “tapado com montanhas de corpos mutilados”.
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“Mais de quatro mil almas morreram(...)”, escreveu Samuel Usque em “Consolação às Tribulações de Israel” (1553).“Von dem Christeliche / Streyt, kürtzlich geschehe / jm. M.CCCCC.vj Jar zu Lissbona / ein haubt stat in Portigal zwischen en christen und newen chri / sten oder juden , von wegen des gecreutzigisten [sic] got"; reprodução a partir de cópia publicada pelo Hebrew Union College, Cincinnati, OH. O original, bastante raro, encontra-se na Houghton Library, Harvard University. Panfleto anónimo, impresso na Alemanha (presumivelmente poucos meses depois do massacre de Lisboa).
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Nesta imagem, o “progrom” de 1506 contra os judeus de Lisboa é descrito em detalhe e as matanças são contadas ao pormenor. A gravura do frontispício mostra os corpos mutilados e envoltos em chamas de dois judeus portugueses, dois irmãos, os primeiros a morrer num massacre que vitimou mais de 4 mil pessoas. Numa época de vocação ecuménica em que a Igeja Católica demonstra uma certa apetência em pedir perdão pelo passado, a oportunidade de 2006 tornar-se-ia no mínimo adequada. Mas o desafio seria - e creio que virá a ser - bem mais profundo: olharmo-nos de frente e encararmos finalmente o que somos, como fomos, em todas as suas facetas. Na multiplicidade histórica e mítica ainda por preencher e entender. Não há Idade de Ouro que não tenha reversos feridos. Mas tapar as feridas e ocultar o incómodo não é, nem pode ser próprio de uma cultura que fez da ‘saudade’ e do ‘amor eterno’ santuários de remissão vaga e quase mística. Que o sonho e a lenda não sirvam para encobrir a dor. Encobrir não é viver; é mitificar e calar.Fica, para já, o desafio proposto para 2006.
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No Rua da Judiaria, estão a ser publicados diariamente documentos históricos acerca desta parte escondida da história portuguesa.
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*"A palavra de origem russa Pogrom ("погром") denomina um ataque violento massivo a pessoas, com a destruição simultânea do seu ambiente (casas, negócios, centros religiosos). Historicamente, o termo tem sido usado para denominar actos massivos de violência, espontânea ou premeditada, contra Judeus e outras minorias étnicas da Europa".
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*O autor de Consolaçam ás tribulaçoens de lsrael , Samuel Usque, confirma que as matanças de Lisboa tiveram lugar em 5266 (calendário hebraico), ou seja, em 1506 da era cristã.