O Trevo de Abel – Episódio 36
Terceira Parte – O tempo de Abel
Folhetim do Miniscente
e
e
Terceira Parte – O tempo de Abel
Folhetim do Miniscente
e
e
O Príncipe Real de Lisboa já foi chamado Alto das Cotovias e conheceu perto de si a graça de muitos vendavais e moinhos de vento. O Príncipe Real de Lisboa foi local de lixeira do Bairro Alto, de ruínas sucessivas e de acampamento militar a seguir ao maior dos terramotos. O Príncipe Real de Lisboa foi lugar de forca, de Basílica Patriarcal, de incêndios e voragens. O Príncipe Real de Lisboa foi miragem de construções faraónicas, foi cabouco do erário e, de novo, entulho restaurado. O Príncipe Real de Lisboa foi o ponto alto de muitos esquecimentos e de planos infrutuosos.
Por agora, esquecidos da história mais irremissível e perdida, os cedros de folhagem aberta descansam apoiados nos caramanchões e a noite parece finar-se na timidez ainda lúgubre do dia. E este é o dia em que tudo, quase de certeza, irá acontecer. Abel está cansado da imensa história que vem contando ao grupo que o acompanha, há já horas e horas. Abel senta-se num dos bancos, fecha os olhos, quase dorme. Deixa por momentos este mundo e assim dorme profundamente por instantes, Abel.
À volta, como se apenas tivessem passado segundos durante as últimas horas, o diálogo precipita-se. Inicia-se:
Isabel - O que é que queria Isaías dizer com tudo aquilo?
Dona Joana (extenuada) - Referia-se, quase com toda a certeza, ao encontro que ontem tivemos com ele, junto ao Mercado da Ribeira.
Lopamudra de Vidarbha - Mas o Isaías aparece nesta história como Judas, ou antes como o bom amigo que avisa de perseguição iminente o próprio acossado?
Júlia - Não sei, talvez as duas coisas. Eu sou muito desconfiada.
Altino de Mendonça - E acham mesmo que a Leonor não reconhece no Abel, pelo menos na intimidade, qualquer coisa do antigo namorado? É que, quando eu há pouco disse - “tomai e comei” - era nisso que estava a pensar. Ou seja, a presa reconhece sempre o seu caçador, mesmo depois de morta. Não vos sabe muito melhor um faisão caçado por vós, do que por qualquer outro deputado da nação?
Zorba - Vê-se mesmo que vives noutra galáxia, ó pobre homem de S. Bento. É evidente que há coisas dessas que se sentem. Mas são coisas sem tradução. São apenas manchas muitos distantes da nossa consciência. Eu, na Grécia, há muitos anos, senti isso mesmo. Achei-me subitamente de amores por uma mulher alta e vestida de negro. Dançava com ela dia e noite, transfigurado, e, por isso mesmo, me baptizaram por Zorba. No fundo, essa mulher, retirada a máscara veneziana ao fim da festa das sete noites, era, imaginem, a minha própria irmã, ou seja meia-irmã. É que o meu pai também foi embarcadiço e fadista. Leram os Maias?
Isabel - Ó pai, isso é uma coincidência incrível. Nunca me tinhas contado isso.
Zorba - Pois não, filha. A vida é assim. Uma autêntica caixinha de surpresas.
Senhor Gouveia - Mudando de assunto, aquele mordomo catalão de traços orientais era, ao fim e ao cabo, amigo de longa data do próprio Adão, não era? Sempre me pareceu isso.
Zorba - Sim, sim, mais ou menos. Segundo percebi, logo no início da conversa, ainda no Cais do Sodré, o Adão, enquanto cantor e figura televisiva, tinha um filipino ou coisa do género como seu representante em Barcelona. Mas, de qualquer maneira, ele pagou-lhe sempre e bem; muito, muito dinheiro.
Sara de Belém - E as máfias da Catalunha não passaram por Portugal?
Sapateiro Palmeirim - É evidente que sim, mas isso só aconteceu depois do escândalo da Gago Coutinho. Os Coimbras já nem existem e os negócios com as russas estão hoje na mão de gente nova. São os Cortes Ingleses. São as OPAs dos dias de hoje.
Chico de Belém - E como é a vida de Luísa e da filha, hoje em dia?
Júlia - Penso que vive em Cascais, fez um casamento bom e dedica-se a fazer festas. Contrata criados de papillon, encomenda cozinhados sumptuosos e paga às revistas do social para testemunharem o feito. Fica muito contente com isso e, depois, vai vivendo desses rendimentos fotogénicos. Às vezes, e porque tem certas heranças nostálgicas, organiza encontros com antigas amigas, mas sem convidar os habitués do jet set. Nada melhor do que separar águas para estar sempre bem consigo mesma.
Dona Joana (consumida pelo cansaço) - Então... foi por causa disso que a Leonor recebeu aquela chamada no telemóvel...
Júlia - Exacto.
Dona Joana - Estou a ver, estou a ver.
Senhor Gouveia - Uma coisa é certa: quando ele ressuscitou, deixem-me empregar esta palavra só para ser prático; dizia eu, quando ele ressuscitou a primeira vez, assustou-se muito e desinteressou-se depois quase totalmente pela sua vida anterior. Pelo contrário, quando passou de Caim a Abel, os pavores foram-se dissipando, a pouco e pouco, e, por trás dos apetites domésticos de Belas, surgiu-lhe até um certo interesse pelo passado.
Isabel - Talvez isso seja verdade, mas só em parte. Reparem que ele foi levado a recordar insistentemente o tempo dos seus catorze ou quinze anos, apenas porque reencontrou a Leonor. Acho isso uma coisa espantosa, a sério! Quanto ao resto, só o curso das coisas o poderá ditar, não é?
Sapateiro Palmeirim - Sim, sim, no entanto, se o Isaías andou a espalhar a nova pelos cais de Lisboa e se o Preste João da Etiópia, nos tempos que se seguiram, também espalhou a mesma notícia pelos mares televisivos do planeta, não é, pois, normal que a coisa tenha começado, com algum vagar, a soar também aqui por Lisboa?
Senhor Gouveia - É possível, é possível. Disso não me tinha eu lembrado.
Sapateiro Palmeirim – Claro. Não é assim que se fazem rumores? Penso bem que sim, porque é o mesmo que dizer que, quando alguma folhagem evita o sol de Verão, se esta o toma em cheio, é muito maior a sombra que o amparo sentido. Assim são também os que falam demais e intrigam, pois as suas esperanças tomam sempre praticamente em cheio a realidade das coisas de que falam e intrigam.
Zorba- Ó Isaías, és ainda pior que o deputado. Quando falas, não há palavra que se perceba!
Júlia - Mas... será o Abel, a esta hora, já um acossado?
Dona Joana - Em Francês é “A bout de souffle”, não é?
Sara de Belém (rindo-se) - Mas o Abel não é nenhum actor de cinema! Não confundamos as coisas!
Júlia- Quero eu dizer... não correrá perigo o Abel a esta hora?
Zorba - Não, tenham calma. Deixem o homem contar o resto da história. Não vêem que já abriu os olhos e se espreguiça?
Dona Joana (definitivamente exausta) - Diz-me a idade... que os bons presságios despertam sempre com o sono da manhã.
Isabel - Vamos sair daqui. Este lugar é bonito, por fora, todo ele feito de repuxos e cedros, mas, no fundo, tem uma história medonha: lixo, forca, entulho e incêndios!
Zorba - Ó filha, és mesmo impressionável diante das coisas mais normais deste mundo. Repara que a vida só separou, um dia, o que é normal do que é anormal por necessidades da razão, dos dogmas, dos mundos fechados. Por mais nada. Mas a vida é muito mais do que isso. Acredita.
Júlia - O Abel que o diga. Olha, que já se põe de pé e acorda.
Abel - O quê, o quê, de que falam?
Por agora, esquecidos da história mais irremissível e perdida, os cedros de folhagem aberta descansam apoiados nos caramanchões e a noite parece finar-se na timidez ainda lúgubre do dia. E este é o dia em que tudo, quase de certeza, irá acontecer. Abel está cansado da imensa história que vem contando ao grupo que o acompanha, há já horas e horas. Abel senta-se num dos bancos, fecha os olhos, quase dorme. Deixa por momentos este mundo e assim dorme profundamente por instantes, Abel.
À volta, como se apenas tivessem passado segundos durante as últimas horas, o diálogo precipita-se. Inicia-se:
Isabel - O que é que queria Isaías dizer com tudo aquilo?
Dona Joana (extenuada) - Referia-se, quase com toda a certeza, ao encontro que ontem tivemos com ele, junto ao Mercado da Ribeira.
Lopamudra de Vidarbha - Mas o Isaías aparece nesta história como Judas, ou antes como o bom amigo que avisa de perseguição iminente o próprio acossado?
Júlia - Não sei, talvez as duas coisas. Eu sou muito desconfiada.
Altino de Mendonça - E acham mesmo que a Leonor não reconhece no Abel, pelo menos na intimidade, qualquer coisa do antigo namorado? É que, quando eu há pouco disse - “tomai e comei” - era nisso que estava a pensar. Ou seja, a presa reconhece sempre o seu caçador, mesmo depois de morta. Não vos sabe muito melhor um faisão caçado por vós, do que por qualquer outro deputado da nação?
Zorba - Vê-se mesmo que vives noutra galáxia, ó pobre homem de S. Bento. É evidente que há coisas dessas que se sentem. Mas são coisas sem tradução. São apenas manchas muitos distantes da nossa consciência. Eu, na Grécia, há muitos anos, senti isso mesmo. Achei-me subitamente de amores por uma mulher alta e vestida de negro. Dançava com ela dia e noite, transfigurado, e, por isso mesmo, me baptizaram por Zorba. No fundo, essa mulher, retirada a máscara veneziana ao fim da festa das sete noites, era, imaginem, a minha própria irmã, ou seja meia-irmã. É que o meu pai também foi embarcadiço e fadista. Leram os Maias?
Isabel - Ó pai, isso é uma coincidência incrível. Nunca me tinhas contado isso.
Zorba - Pois não, filha. A vida é assim. Uma autêntica caixinha de surpresas.
Senhor Gouveia - Mudando de assunto, aquele mordomo catalão de traços orientais era, ao fim e ao cabo, amigo de longa data do próprio Adão, não era? Sempre me pareceu isso.
Zorba - Sim, sim, mais ou menos. Segundo percebi, logo no início da conversa, ainda no Cais do Sodré, o Adão, enquanto cantor e figura televisiva, tinha um filipino ou coisa do género como seu representante em Barcelona. Mas, de qualquer maneira, ele pagou-lhe sempre e bem; muito, muito dinheiro.
Sara de Belém - E as máfias da Catalunha não passaram por Portugal?
Sapateiro Palmeirim - É evidente que sim, mas isso só aconteceu depois do escândalo da Gago Coutinho. Os Coimbras já nem existem e os negócios com as russas estão hoje na mão de gente nova. São os Cortes Ingleses. São as OPAs dos dias de hoje.
Chico de Belém - E como é a vida de Luísa e da filha, hoje em dia?
Júlia - Penso que vive em Cascais, fez um casamento bom e dedica-se a fazer festas. Contrata criados de papillon, encomenda cozinhados sumptuosos e paga às revistas do social para testemunharem o feito. Fica muito contente com isso e, depois, vai vivendo desses rendimentos fotogénicos. Às vezes, e porque tem certas heranças nostálgicas, organiza encontros com antigas amigas, mas sem convidar os habitués do jet set. Nada melhor do que separar águas para estar sempre bem consigo mesma.
Dona Joana (consumida pelo cansaço) - Então... foi por causa disso que a Leonor recebeu aquela chamada no telemóvel...
Júlia - Exacto.
Dona Joana - Estou a ver, estou a ver.
Senhor Gouveia - Uma coisa é certa: quando ele ressuscitou, deixem-me empregar esta palavra só para ser prático; dizia eu, quando ele ressuscitou a primeira vez, assustou-se muito e desinteressou-se depois quase totalmente pela sua vida anterior. Pelo contrário, quando passou de Caim a Abel, os pavores foram-se dissipando, a pouco e pouco, e, por trás dos apetites domésticos de Belas, surgiu-lhe até um certo interesse pelo passado.
Isabel - Talvez isso seja verdade, mas só em parte. Reparem que ele foi levado a recordar insistentemente o tempo dos seus catorze ou quinze anos, apenas porque reencontrou a Leonor. Acho isso uma coisa espantosa, a sério! Quanto ao resto, só o curso das coisas o poderá ditar, não é?
Sapateiro Palmeirim - Sim, sim, no entanto, se o Isaías andou a espalhar a nova pelos cais de Lisboa e se o Preste João da Etiópia, nos tempos que se seguiram, também espalhou a mesma notícia pelos mares televisivos do planeta, não é, pois, normal que a coisa tenha começado, com algum vagar, a soar também aqui por Lisboa?
Senhor Gouveia - É possível, é possível. Disso não me tinha eu lembrado.
Sapateiro Palmeirim – Claro. Não é assim que se fazem rumores? Penso bem que sim, porque é o mesmo que dizer que, quando alguma folhagem evita o sol de Verão, se esta o toma em cheio, é muito maior a sombra que o amparo sentido. Assim são também os que falam demais e intrigam, pois as suas esperanças tomam sempre praticamente em cheio a realidade das coisas de que falam e intrigam.
Zorba- Ó Isaías, és ainda pior que o deputado. Quando falas, não há palavra que se perceba!
Júlia - Mas... será o Abel, a esta hora, já um acossado?
Dona Joana - Em Francês é “A bout de souffle”, não é?
Sara de Belém (rindo-se) - Mas o Abel não é nenhum actor de cinema! Não confundamos as coisas!
Júlia- Quero eu dizer... não correrá perigo o Abel a esta hora?
Zorba - Não, tenham calma. Deixem o homem contar o resto da história. Não vêem que já abriu os olhos e se espreguiça?
Dona Joana (definitivamente exausta) - Diz-me a idade... que os bons presságios despertam sempre com o sono da manhã.
Isabel - Vamos sair daqui. Este lugar é bonito, por fora, todo ele feito de repuxos e cedros, mas, no fundo, tem uma história medonha: lixo, forca, entulho e incêndios!
Zorba - Ó filha, és mesmo impressionável diante das coisas mais normais deste mundo. Repara que a vida só separou, um dia, o que é normal do que é anormal por necessidades da razão, dos dogmas, dos mundos fechados. Por mais nada. Mas a vida é muito mais do que isso. Acredita.
Júlia - O Abel que o diga. Olha, que já se põe de pé e acorda.
Abel - O quê, o quê, de que falam?