terça-feira, 15 de novembro de 2005

Folhetim

O Trevo de Abel – Episódio 32
Terceira Parte – O tempo de Abel
Folhetim do Miniscente
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Subo às águas-furtadas e não sou capaz de deixar de pensar em Barcelona. Apenas por estar no sótão, nas águas-furtadas, no desvão, na mansarda, na trapeira, enfim neste espaço fechado tipo farol, breve torreão de menagem, resguardo infantil, porventura. Aqui dormiu Leonor durante anos e anos até que a morte dos pais a fez descer ao primeiro andar, acompanhada das bonecas, dos napperons, das molduras, dos pratos falsos da China, ou da Vista Alegre. É uma casa cor de cereja, talvez bordeaux claro, rosa ácido, ou mesmo tinto da região, desde que filtrado pelos raios do sol que entram pelas janelas altas que são de guilhotina, divididas em dezasseis pequenas vidraças por cada portada. Um encanto.
Leonor continua na escola. Espero-a como se estivesse ainda no passeio diante da casa branca da Praia das Maçãs e o mar urgisse, e a porta se abrisse pela calada, era tempo de sesta e os senhores haviam saído. Entrei e, por trás da marquise, viam-se pinheiros, arbustos rasos, campos de gaivotas a descansar do entra e sai pelas arribas, pela escarpa aberta; e nós abraçados, com mácula, talvez com aquele deslumbre que invade os corpos de tanto se desejarem; por tudo e por nada, Leonor punha batom e fazia-se mais velha, entrava-me nos olhos e dizia três palavras, uma frase, um ínfimo gemido... e eu corado por dentro, crescendo para fora, revendo o movimento dos braços na janela entreaberta das marquises; havia aragens fortes, marés estranhas, luas muito demoradas, era da idade e o tempo passou a correr, pode crer-se.
Parece que estou ainda a viver essa lenda longínqua. Estou de pé à janela da nova casa e vejo, em frente, outro sótão infantil e outra casa também de bonecas, azul-clara como a dos pombais da praça, e o telhado ao meio interrompido por um triângulo genuíno, onde aflora uma única janela no porão aéreo, na sobreloja. Subitamente, estou a andar de táxi e levo Leonor comigo pela primeira vez. Vamos a Sintra, Leonor precisa de ir à Câmara, coisas de heranças, diz. É claro que Belas já foi sede de concelho, há tanto tempo que isso foi, e, depois, enfim, contam tanta história, - O senhor é que, na sua vida, deve ouvir contar de tudo, não é? - Sim, até já tinha ouvido falar nessa coisa da Casa Real que dá ali para a praça e que, como a senhora disse, como é que se chama, Ah, sim, Leonor, Dona Leonor, pois, pois é; tudo isso foi há imenso tempo, era em Belas que se realizava a grande romaria - Claro, eram as festas do Senhor da Serra. - Nesses tempos remotos, o Marquês de Belas encontrava-se muitas vezes na Rua da Palma, em Lisboa, com um amigo que era meio galego. Um belo dia, morre o marquês e o amigo que era seu credor apropria-se da quinta e, mais tarde, são já os filhos do galego que vendem a quinta e também o palácio ao senhor Albufeira e este, por sua vez, assim reza história, Dona Leonor concorda, não é verdade? - Sim, sim, Leonor leva a mão ao cabelo e estuda o escorço, a efígie, a figura, a estampa, o brilho oculto na imagem reflectida nos vidros do carro - é este senhor Albufeira, dizia, quem acabou por dar cabo do jardim, da mata, das cataratas e até, um dia, as próprias festas do Senhor da Serra acabaram. Leonor, uf, era ela mesmo, uf, que euforia secreta; Leonor, dizia, fora à Câmara e eu passeei-me pela Pena, pelos cafés, espreitei a estação e o novo museu, mas só do lado de fora. Uma hora depois, lá trouxe a professora de volta até esta casa onde agora estou. Na Cândido Reis, é verdade que não me havia enganado.
Leonor já era assim no tempo da Praia das Maçãs. Tinha o riso exuberante, uma espontaneidade súbita e o olhar aparentemente fixo e monótono. Era agitada, corria mais que os miúdos, olhava com frieza para os arames do estendedouro que ficavam junto às lajes da marquise onde pousam as roupas. Pela calada, repito, eu entrava - e estou ainda a entrar - naquela óptima casa de praia que mais parecia um comboio (tinha um longo corredor ao meio, todo vazio, comprido e as portas abertas ou fechadas das muitas divisões da casa davam para essa passagem sem fim) até que, na frente da roupa estendida, encostados ao embaciado dos vidros, ela me puxou pelo pescoço e dançava e dança ainda com os seus lábios nos meus. Com uma fúria descomunal, imensa, arrebatada. Leonor tinha esse olhar fixo num ponto, mas era coisa só de aparência e foi por isso que Dona Olga, na esplanada do Café Parque, se virou para ela e lhe disse - Então, senhora professora, está a pensar no quê? Nessa altura, o médico chegou e recebeu da saloia anafada o seu saco de fruta e pediu o café. Dona Olga manteve o olhar suspenso, hirto, e do alto do seu cabelo grisalho muito produzido, casaco cor de camelo e gravata larga de vison com nó de ombro a ombro, repetiu Dona Olga a pergunta com ênfase, enquanto o médico espreitava para dentro do saco da fruta e abria as narinas e, por milagre, eu próprio apareci e logo pedi o meu chá de limão. Foi então que Leonor me repetiu o seu bom dia de sempre e, virando-se para a Dona Olga, carregada de anéis depois de descalçar a luva, e, claro, virando-se também para a esposa do médico, disse que hoje não ia dar aulas porque tinha uma grande dor de cabeça. Era do tempo, concordava o dono do café, a esposa, o doutor, Dona Olga, a própria decerto e até eu disse que sim com a cabeça, mantendo o apreciado silêncio de sempre.
Esse meu gesto, ou talvez a manha com que o meu olhar se terá emancipado das operações plásticas por que já passei, ou mesmo algum desejo mais sublunar, tiveram influência nos planetas de Leonor. E a verdade é que, nesse dia à noite, quando o telefone tocou na Praça 5 de Outubro, e o tinir da campainha sobrevoou o vazio dos bancos de pedra, dos pombais, do parque infantil, do coreto, de tudo - e eu atendi, era a voz dela quem falava do outro lado e me pedia que a levasse a Lisboa, - É que a esta hora só uma pessoa de confiança, sabe! Fomos pelo IC19, Segunda circular, Avenida da República e, mesmo ao pé da Biblioteca Nacional, disse-me de súbito - Pare o carro se faz favor. Eu parei e ela atrás, com um xaile lilás à volta do pescoço, perguntou - Se deixasse por acaso de ser taxista, era mesmo capaz de largar de vez a sua profissão? Que sim, já tinha trabalhado pelo mundo todo, fora gerente de empresas, trabalhador de marinha mercante, agente da Swissair, operador de televisão e agora taxista. - O meu problema é esse! Sabe, penso que as minhas dores de cabeça só surgem quando, de repente, há qualquer coisa que eu, no fundo de mim, recuso ou detesto fazer. Gostava de ter estado em todos esses países e ter feito outras coisas, mas agora é tarde demais!
Percebi que queria desabafar e, por isso mesmo, de modo simpático, convidei-a para cear num restaurante perto de Queluz, coisa de jeito, bem frequentada. Fui ficcionalizando a minha vida como pude e, naturalmente, ocultando as outras vidas por mim vividas enquanto, do lado dela, ia ouvindo o rosário triste da sua história e a revelação mais inesperada; ou seja, para além de tanto desaire, apenas as tais longínquas férias de Verão, na Praia das maçãs, se salvavam na alegria da memória. Corei, cruzei os braços, cocei as mãos e lembro-me que havia imenso calor dentro do restaurante e, além do mais, fazia-se já bastante tarde. Por isso, levei a Leonor à porta de casa e aconselhei-a a pedir um atestado médico, a dar uma volta, a ocupar-se com outras coisas durante uns dias; - Eu... podia levá-la à Nazaré ou à Batalha, enfim, se achar que não é, vamos lá, ousadia minha dizê-lo ou, por outras palavras... que está à vontade na sua vida para que eu o possa propor desta maneira. Que sim, dizia Leonor - Mas esta minha cabeça é... e não conseguia acabar a frase de modo nenhum e eu logo me apercebi da atrapalhação e, nestes casos, diz a sabedoria antiga, que é melhor deixar a festa por acontecer, no ponto de rebuçado, na margem limite. Foi o que fiz. Saí do carro nessa altura, abri-lhe a porta e ela saiu. Disse boa noite secamente, apertei a mão e apenas pus o táxi a trabalhar quando vi luz acesa no primeiro andar. Sabia agora que os próximos episódios ditariam sentença.
Continuo nas águas-furtadas e já não penso em Barcelona. Mas lembro que no tempo dos meus catorze a quinze anos não havia ainda esgotamentos, angústias a metro, desabafos tresloucados e várias vidas vividas. Havia apenas a esperança de viver uma única vidinha e era ao correr da pena que, por linhas ínvias, o destino se escrevia. Era uma caligrafia que se estendia, leve, diante daquelas marquises onde havia o tal grande estendal, o cheiro a goma, a mão sábia das lavadeiras, as cortinas de rede e, por trás do embaciado dos vidros, os lábios dançavam durante uma eternidade que se ia dilatando fora do tempo. Nessa desordem feliz, ou melhor, nessa felicidade meteórica e sem tradução possível morava eu e morava a Leonor; enquanto, agora, é nesta desordem desencontrada, ou melhor, neste desencontro tornado encontro e sem qualquer explicação possível que eu e a Leonor habitamos numa mesma casa.
Tudo aconteceu numa ida à Batalha, talvez um mês depois da ceia. Tinha estacionado o carro perto de Vieira de Leiria, algures bem em frente do oceano nocturno e tumultuoso. Aí, à beira desse areal meio molhado, lembrei a Leonor, mas sem nunca falar, sem uma única palavra, tudo, tudo, tudo o que ela já vivera, quando as Maçãs ainda eram uma praia paradisíaca e solar. Dei-lhe a ler a maresia, o sussurro das ondas, a noite. E nós ali agarrados ao fim de algum tempo de pasmo. E nós a lutarmos com os nossos fantasmas, sem saber onde passar a mão pela pele, pela roupa, pelas extremidades da história. Tanta atrapalhação e engasgo que valiam por cometas e luzes de ribalta. Como me lembrei do pirotécnico Afonso! Era uma história de amor inesperada. Pela idade, diria ela. Pelo meu singular fado, pensaria eu.