O Trevo de Abel – Episódio 30
Terceira Parte – O tempo de Abel
Folhetim do Miniscente
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Terceira Parte – O tempo de Abel
Folhetim do Miniscente
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Foi no início de uma tarde de céu nublado e nebuloso que tudo ocorreu. Eu tinha subido até à estrada do Moinho Velho e preparava-me para regressar à praça. Quando dei a curva à direita e tive que parar junto ao portão da escola, deparei com a senhora enérgica que tinha saído pelas grades do portão e que, a dado momento, voltou para trás, quem sabe se por ter sido chamada por colega ou empregada. Nessa altura, talvez porque algo muito longínquo e incógnito me despertasse a atenção, abri o vidro do carro e involuntariamente ouvi a estrondosa gargalhada com que a dita senhora correspondeu a quem a chamara. Desci, logo a seguir, a íngreme rua da escola até à casa das bonecas e fui, sempre intrigado, com os olhos fixos no retrovisor. Perto dos azulejos da Casa da Sorte, vi que a senhora continuava a sorrir, a sós, e que ia bastante carregada com uma mala e um saco de compras. Tinha um verdadeiro ar de professora e, no seu jeito roliço e chorudo, pode dizer-se que era uma mulher elegante. Pela segunda vez, fui levado a parar o carro, baixei o vidro e, com a cara muito séria, perguntei - Mandou-me parar? Ao que ela respondeu, porventura admirada, - Eu? Um táxi? Ai! Não, não, não; deve ser engano. Sorri, olhei-a nos olhos e desci ao meu poiso, paredes-meias com o repuxo e os bancos semi-circulares cobertos de buganvílias.
Na Praça 5 de Outubro da já minha vila de Belas, estive grande parte dessa tarde sem qualquer serviço. Sentado ao volante, no meu posto de espera, eu ia entretendo o vagar e a delonga, como sempre, através de olhares fugazes para as portadas azuis da Casa de Saúde, para os encontros da esplanada do Café Parque e, mais à direita, para o parque infantil, hoje completamente deserto. A dado momento, entre mil e um pensamentos e divagações meio ocas, como que voltei a reter a euforia, o andar, o gesto enérgico, a admiração, a voz e dei comigo a pensar que conhecia esta professora de algum lado! Mas de onde? E terá sido nesse instante de sigilosa descoberta, ou de leve torpor, que eu me vi súbita e espontaneamente a dizer entre lábios - Mas é a Leonor! Confesso que, uns metros atrás, o tipo da gasolina deve ter-me visto a falar sozinho; deve ter-me visto a rir e a agitar os braços, tal era o reconhecimento quase milagroso que tinha acabado de acontecer.
Agora urgia confirmar e seguidamente indagar tudo o resto: onde morava, que hábitos tinha, com quem convivia, etc. - Mas porquê? Voltava eu a perguntar aos meus botões de taxista misantropo; cidadão na defensiva das vidas já vividas; homem temeroso de Adões e Cains de estirpe expansiva e inexplicável. - Nesta minha nova quietude, nada melhor que a redoma do novo carrinho para estar bem e sobretudo protegido!, Pensava Abel com alguma sofreguidão e contida esperança, ao som da Rádio Capital. Depois, o telefone tocou. Era uma voz esganiçada a pedir táxi para o início da Avenida da Marinha. Abel pôs a viatura em marcha, mas não conseguia pensar já noutra coisa. A professora. A professora. A Leonor. Vários dias assim se passaram, até que decidiu voltar a passar pela escola à uma e meia.
Nesse dia, quem sabe se por nervosismo ou remoto gáudio, Abel passou pelo Café Parque um hora antes da arremetida. Sentou-se na estreita esplanada em frente de uma chávena de chá de limão e limitou-se depois a tentar relaxar-se, a descontrair. Ao lado, na mesa habitual, o médico era, ao mesmo tempo, um leitor ávido do jornal diário, o anfitrião das amigas íntimas da mulher e ainda tinha tempo para receber das mãos de uma saloia anafada a fruta que, doutra maneira, teria que comprar fora de portas. Um quadro da corte da aldeia revisto nos nossos dias, nesta que é - ou poderia ter sido - uma pequena Sintra, hoje cercada por arranha-céus, disformes betões e uma infindável travessia automóvel, para além da CREL, lá em cima a cruzar a via láctea desta vila de flor de lis.
De repente, sem mais, estava eu ali sentado a pensar naquele arco de belo betão, navegando no lado mais vazio de qualquer quimera e ria de mim para mim; eu ali sentado e sem saber ainda que, minutos depois, seria ela a descer a rua, o rabinho a sobrelevar e a ressaltar os dois lados das cuequinhas, ou cinta que fosse por sobre o arco belo da sua cintura; minutos depois seria ainda ela a ostentar para os lados o bambolear das doces nádegas, de par em par, quais peças de fruta que o doutor agora consulta, quando mete os olhos indiscretos no fundo do saco, de certeza a ver se a saloia anafada o não enganou. Eu, sentado na esplanada a beber o chá de limão e não a cerveja, pois que nesta minha profissão de taxista só posso beber às vezes e às escondidas; já se viu o que era se a senhora de gravata larga de vison e cabelo grisalho muito arranjado me visse a beber um brandi, ela que olha para as bochechas caídas do médico com algum alvor, senão mesmo anseio? E daqui a minutos, lá vou voltar de táxi a descer a rua, desta feita atrás dela, como que antevendo o deleite; não apenas vê-la a cambalear o saracoteado das nádegas, mas sobretudo para a estudar com mais vagar: os tornozelos redondinhos, o modo como pega na pasta e leva a outra mão ao cabelo, o riso contido, a agilidade. E eu a ver-me ali sentado, mas já a ouvir-lhe a gargalhada que voltou a largar à porta da casa das bonecas, quando apareceu a menina de bata azul que trabalha na casa de saúde das freiras hospitaleiras e é assistente do médico que agora pousou o jornal e disse - Que belo dia, pelo menos hoje não chove!
Na montra da loja das bonecas existe um pequeno Cristo deitado de barriga para o ar, mas, nas prateleiras de cima, há algumas bonecas ainda de pé que ostentam batom, folhos largos e brancos, bochechas vermelhas e muitos, muitos chapéus lilases de chita, como de chita eram os vestidos de noite que o minúsculo jet set da Praia das Maçãs vestia nos bailes recatados dos anos sessenta, quando nós namorávamos, para cima e para baixo, entre Sintra e o mar. Eu e a Leonor. Entretanto, a menina de bata azul saiu da loja e tu riste como sempre gracejaste; alto e líquido motejo, troça ou mesmo escárnio; vi-te ainda a mexer a perna lentamente, o tornozelo redondo, o timbre certo, o jeito. És tu, de certeza, Leonor, e eu tenho o dever de me dar a conhecer à tua gargalhada que é solitária, não deve ter companhia; é, pelo menos, o que me diz a maravilhada intuição que hoje, desde cedo, me acompanha. Volto a levar o chá de limão à boca e olho para o relógio todos os minutos, ou quase. Quando o faço, ouço da mesa do lado a Dona Olga, de cabelo grisalho arranjadíssimo e múltiplos anéis, a inquirir com voz fina: - Então senhor Abel, um descansozinho... não? - Que sim, respondo eu, revestindo-me de prudente sorriso e um crescendo de pressentida intimidade, cuja motivação não descortino, nem ao menos pelo ar húmido estilo capacete que, tal como na Ilha na Madeira, hoje cobre esta Belas e toda a sua via láctea de betão, lá mais para os lados palacianos de Queluz.
Às dez para as duas, levantei-me e andei até ao carro com os pés a repetir a forma dos ponteiros, tal era o modo como me dava e dou a esses momentos de verdadeira arremetida e convicção. O que eu queria era manter o meu recato, o meu sigilo. Que não me viessem cá falar noutras vidas e coisas dessas, pois, desde a última vez que mo acontecera, depois das desventuras da Gago Coutinho, Porfírios, Arletes, Saras, Tailândias e outras coisas assim, eu não queria senão estar a sós com as minhas coisinhas - e, se, com sorte, nesse meloso desejo de reconforto, me aparecesse uma Leonor transfigurada pelo tempo, eu não desdenharia avançar. Bem sei que sou um sonhador desafortunado, um rapaz sem melhoras; já a minha avó Maria Alba o dizia, apesar de, nesse tempo, eu chegar sistematicamente a casa com más notas e não perceber nada, mas nada mesmo de aritmética. Levantei-me e paguei o chá, ouvi um coro aldeão de cumprimentos e com ele elevou-se-me a confiança e o ardor. Contudo, nestes momentos de maior impulsão sanguínea, de maior convulsão e temperança, muitas vezes era a minha primeira família que eu evocava e recordava... a Luísa, a minha filha. Mas porquê? Vá-se lá saber! Pensei eu, já no momento em que rodava a chave e a ignição antecedia a marcha do Nissan. E assim avancei.
De qualquer modo, se tinha saudades, era porque nunca mais podia aparecer ao pé da Luísa e da minha filha, a não ser que fosse depois tido e achado como Romeiro da primeira vida e assassino da segunda; por outro lado, jamais podia voltar a encarar aqueles que abandonei e de que me desinteressei radicalmente na última das vidas. Só me restaria, ou escrever cartas efémeras à minha filha, coisa para a qual não tenho grande talento; ou apenas lembrar por lembrar com suprema melancolia e decisivo arrependimento. Mas para que servem esses sentimentos pouco nobres, afinal? Pensei ainda, já o carro subia a Rua Dr. Malheiros, cruzava depois as glicínias da Victor Cordon em frente do Mercado Paroquial e da abandonada Vila Jacinta para, logo a seguir, voltar a subir, sem quaisquer pressas, pela insuspeita estrada do Moinho Velho. Aí os telhados aumentam, as paredes reclinam-se e, a culminar a visão, a escola perfila-se nas alturas. E o coração a voltar a bater, a bater, a bater.
Dei a volta perto do edifício da pré-escolar e, após uma breve descida com o motor já em ponto morto, encostei à esquerda junto ao muro. E aí fiquei, lado a lado com os jarros bravios que se encostam à água corrente da sarjetas, a observar, mais abaixo, sobre a parede cor-de-rosa e porosa, três gatos meio vesgos que pareciam querer espreitar a saída das crianças da escola. Até que surgiu a professora augurada. Lá ia ela, rápida e agitada, a descer a rua íngreme, olhando à direita para a escadaria recheada de pneus com vasos pelo meio; uma delícia de paisagem urbana. Foi então que meti a segunda e me pus atrás dela até voltar a ouvir, junto à casa das bonecas, no fundo da rua, a tal gargalhada deslumbrante. Embeveci-me e decidi que haveria de descobrir a casa onde ela morava. Isto não era apenas mais uma amante, um futuro caso sem sentido, ou o que se imaginasse; era sim o que restava do meu primeiro e sincero amor dos catorze, quinze anos.
Desconfiava agora, de facto, que o destino me tivesse posto na mão uma ave tão esbelta para não mais a deixar fugir...
Na Praça 5 de Outubro da já minha vila de Belas, estive grande parte dessa tarde sem qualquer serviço. Sentado ao volante, no meu posto de espera, eu ia entretendo o vagar e a delonga, como sempre, através de olhares fugazes para as portadas azuis da Casa de Saúde, para os encontros da esplanada do Café Parque e, mais à direita, para o parque infantil, hoje completamente deserto. A dado momento, entre mil e um pensamentos e divagações meio ocas, como que voltei a reter a euforia, o andar, o gesto enérgico, a admiração, a voz e dei comigo a pensar que conhecia esta professora de algum lado! Mas de onde? E terá sido nesse instante de sigilosa descoberta, ou de leve torpor, que eu me vi súbita e espontaneamente a dizer entre lábios - Mas é a Leonor! Confesso que, uns metros atrás, o tipo da gasolina deve ter-me visto a falar sozinho; deve ter-me visto a rir e a agitar os braços, tal era o reconhecimento quase milagroso que tinha acabado de acontecer.
Agora urgia confirmar e seguidamente indagar tudo o resto: onde morava, que hábitos tinha, com quem convivia, etc. - Mas porquê? Voltava eu a perguntar aos meus botões de taxista misantropo; cidadão na defensiva das vidas já vividas; homem temeroso de Adões e Cains de estirpe expansiva e inexplicável. - Nesta minha nova quietude, nada melhor que a redoma do novo carrinho para estar bem e sobretudo protegido!, Pensava Abel com alguma sofreguidão e contida esperança, ao som da Rádio Capital. Depois, o telefone tocou. Era uma voz esganiçada a pedir táxi para o início da Avenida da Marinha. Abel pôs a viatura em marcha, mas não conseguia pensar já noutra coisa. A professora. A professora. A Leonor. Vários dias assim se passaram, até que decidiu voltar a passar pela escola à uma e meia.
Nesse dia, quem sabe se por nervosismo ou remoto gáudio, Abel passou pelo Café Parque um hora antes da arremetida. Sentou-se na estreita esplanada em frente de uma chávena de chá de limão e limitou-se depois a tentar relaxar-se, a descontrair. Ao lado, na mesa habitual, o médico era, ao mesmo tempo, um leitor ávido do jornal diário, o anfitrião das amigas íntimas da mulher e ainda tinha tempo para receber das mãos de uma saloia anafada a fruta que, doutra maneira, teria que comprar fora de portas. Um quadro da corte da aldeia revisto nos nossos dias, nesta que é - ou poderia ter sido - uma pequena Sintra, hoje cercada por arranha-céus, disformes betões e uma infindável travessia automóvel, para além da CREL, lá em cima a cruzar a via láctea desta vila de flor de lis.
De repente, sem mais, estava eu ali sentado a pensar naquele arco de belo betão, navegando no lado mais vazio de qualquer quimera e ria de mim para mim; eu ali sentado e sem saber ainda que, minutos depois, seria ela a descer a rua, o rabinho a sobrelevar e a ressaltar os dois lados das cuequinhas, ou cinta que fosse por sobre o arco belo da sua cintura; minutos depois seria ainda ela a ostentar para os lados o bambolear das doces nádegas, de par em par, quais peças de fruta que o doutor agora consulta, quando mete os olhos indiscretos no fundo do saco, de certeza a ver se a saloia anafada o não enganou. Eu, sentado na esplanada a beber o chá de limão e não a cerveja, pois que nesta minha profissão de taxista só posso beber às vezes e às escondidas; já se viu o que era se a senhora de gravata larga de vison e cabelo grisalho muito arranjado me visse a beber um brandi, ela que olha para as bochechas caídas do médico com algum alvor, senão mesmo anseio? E daqui a minutos, lá vou voltar de táxi a descer a rua, desta feita atrás dela, como que antevendo o deleite; não apenas vê-la a cambalear o saracoteado das nádegas, mas sobretudo para a estudar com mais vagar: os tornozelos redondinhos, o modo como pega na pasta e leva a outra mão ao cabelo, o riso contido, a agilidade. E eu a ver-me ali sentado, mas já a ouvir-lhe a gargalhada que voltou a largar à porta da casa das bonecas, quando apareceu a menina de bata azul que trabalha na casa de saúde das freiras hospitaleiras e é assistente do médico que agora pousou o jornal e disse - Que belo dia, pelo menos hoje não chove!
Na montra da loja das bonecas existe um pequeno Cristo deitado de barriga para o ar, mas, nas prateleiras de cima, há algumas bonecas ainda de pé que ostentam batom, folhos largos e brancos, bochechas vermelhas e muitos, muitos chapéus lilases de chita, como de chita eram os vestidos de noite que o minúsculo jet set da Praia das Maçãs vestia nos bailes recatados dos anos sessenta, quando nós namorávamos, para cima e para baixo, entre Sintra e o mar. Eu e a Leonor. Entretanto, a menina de bata azul saiu da loja e tu riste como sempre gracejaste; alto e líquido motejo, troça ou mesmo escárnio; vi-te ainda a mexer a perna lentamente, o tornozelo redondo, o timbre certo, o jeito. És tu, de certeza, Leonor, e eu tenho o dever de me dar a conhecer à tua gargalhada que é solitária, não deve ter companhia; é, pelo menos, o que me diz a maravilhada intuição que hoje, desde cedo, me acompanha. Volto a levar o chá de limão à boca e olho para o relógio todos os minutos, ou quase. Quando o faço, ouço da mesa do lado a Dona Olga, de cabelo grisalho arranjadíssimo e múltiplos anéis, a inquirir com voz fina: - Então senhor Abel, um descansozinho... não? - Que sim, respondo eu, revestindo-me de prudente sorriso e um crescendo de pressentida intimidade, cuja motivação não descortino, nem ao menos pelo ar húmido estilo capacete que, tal como na Ilha na Madeira, hoje cobre esta Belas e toda a sua via láctea de betão, lá mais para os lados palacianos de Queluz.
Às dez para as duas, levantei-me e andei até ao carro com os pés a repetir a forma dos ponteiros, tal era o modo como me dava e dou a esses momentos de verdadeira arremetida e convicção. O que eu queria era manter o meu recato, o meu sigilo. Que não me viessem cá falar noutras vidas e coisas dessas, pois, desde a última vez que mo acontecera, depois das desventuras da Gago Coutinho, Porfírios, Arletes, Saras, Tailândias e outras coisas assim, eu não queria senão estar a sós com as minhas coisinhas - e, se, com sorte, nesse meloso desejo de reconforto, me aparecesse uma Leonor transfigurada pelo tempo, eu não desdenharia avançar. Bem sei que sou um sonhador desafortunado, um rapaz sem melhoras; já a minha avó Maria Alba o dizia, apesar de, nesse tempo, eu chegar sistematicamente a casa com más notas e não perceber nada, mas nada mesmo de aritmética. Levantei-me e paguei o chá, ouvi um coro aldeão de cumprimentos e com ele elevou-se-me a confiança e o ardor. Contudo, nestes momentos de maior impulsão sanguínea, de maior convulsão e temperança, muitas vezes era a minha primeira família que eu evocava e recordava... a Luísa, a minha filha. Mas porquê? Vá-se lá saber! Pensei eu, já no momento em que rodava a chave e a ignição antecedia a marcha do Nissan. E assim avancei.
De qualquer modo, se tinha saudades, era porque nunca mais podia aparecer ao pé da Luísa e da minha filha, a não ser que fosse depois tido e achado como Romeiro da primeira vida e assassino da segunda; por outro lado, jamais podia voltar a encarar aqueles que abandonei e de que me desinteressei radicalmente na última das vidas. Só me restaria, ou escrever cartas efémeras à minha filha, coisa para a qual não tenho grande talento; ou apenas lembrar por lembrar com suprema melancolia e decisivo arrependimento. Mas para que servem esses sentimentos pouco nobres, afinal? Pensei ainda, já o carro subia a Rua Dr. Malheiros, cruzava depois as glicínias da Victor Cordon em frente do Mercado Paroquial e da abandonada Vila Jacinta para, logo a seguir, voltar a subir, sem quaisquer pressas, pela insuspeita estrada do Moinho Velho. Aí os telhados aumentam, as paredes reclinam-se e, a culminar a visão, a escola perfila-se nas alturas. E o coração a voltar a bater, a bater, a bater.
Dei a volta perto do edifício da pré-escolar e, após uma breve descida com o motor já em ponto morto, encostei à esquerda junto ao muro. E aí fiquei, lado a lado com os jarros bravios que se encostam à água corrente da sarjetas, a observar, mais abaixo, sobre a parede cor-de-rosa e porosa, três gatos meio vesgos que pareciam querer espreitar a saída das crianças da escola. Até que surgiu a professora augurada. Lá ia ela, rápida e agitada, a descer a rua íngreme, olhando à direita para a escadaria recheada de pneus com vasos pelo meio; uma delícia de paisagem urbana. Foi então que meti a segunda e me pus atrás dela até voltar a ouvir, junto à casa das bonecas, no fundo da rua, a tal gargalhada deslumbrante. Embeveci-me e decidi que haveria de descobrir a casa onde ela morava. Isto não era apenas mais uma amante, um futuro caso sem sentido, ou o que se imaginasse; era sim o que restava do meu primeiro e sincero amor dos catorze, quinze anos.
Desconfiava agora, de facto, que o destino me tivesse posto na mão uma ave tão esbelta para não mais a deixar fugir...