O Trevo de Abel - Episódio 28
Segunda Parte: O tempo de Adão
Segunda Parte: O tempo de Adão
Folhetim do Miniscente
e
e
e
e
Era quase Natal quando Porfírio e Adão subiram de táxi até à velha casa de Campolide. A mãe do gigante embarcadiço das sete tatuagens, como sempre, abriu a porta com alegria e estupefacção. Enrolada em lágrimas e num grande xaile preto, a velha senhora tinha o tamanho de um único braço aberto do seu filho, mas, por outro lado, era dotada de uma voz fina e esganiçada que, por si só, fazia tremer os vidros da marquise. Comemos um abundante cozido à portuguesa e, ao longo da noite, à medida que uma garrafa de bagaço se ia esvaziando, combinámos todo o nosso plano, detalhe a detalhe.
No dia seguinte, seguimos para Porto Brandão no carro de um primo de Porfírio, emigrante nos longínquos petróleos da Líbia. Atravessámos a ponte e, a uns metros da entrada na aldeia, estacionámos a viatura e seguimos a pé pela ruela sem vivalma onde se erguem, meio secretas, as Tágides de Ulisses. Porfírio bateu à porta e, passados alguns momentos, surgiu uma das polacas que, talvez de modo imprudente, acabou por abrir a porta. Apareci de imediato e a reacção da rapariga foi de estertor, de desmedido pânico. Mas porquê? Perguntei eu. Rapidamente, percebi que algo de muito estranho se estava a passar... a avaliar até pelo aspecto da casa.
Estava tudo desarrumado, encardido; sentia-se um cheiro a fechado e a velho; havia copos partidos no chão, toalhas a cobrirem móveis, espinhas de peixe sobre a estante e pó por todo o lado. - Que é que se passou, rapariga? Mas a polaca tremia e apenas era capaz de dizer que tinha ali ido por causa de um senhor... e mais não conseguia transmitir, tal era o nervoso e sobretudo o medo. Olhava para nós como se fôssemos fantasmas, como se jamais ali pudéssemos ter aparecido. Empurrámo-la à força para dentro do carro e seguimos para a casa do primo do Porfírio, na parte de cima da Rua de Cruz de Alcântara. Interrogámos então a rapariga, mas não dizia palavra que se visse; até que com a ajuda de algumas festinhas mais agridoces lá contou tudo o que queríamos saber.
Sim, e a questão agora era esta: onde é que estava Sara? Não, afinal não estava em Barcelona, estava ainda cá... Voltámos rapidamente ao carro e corremos a toda a velocidade para a Gago Coutinho, através do frenesi terrível do trânsito de Lisboa, via eixo Norte-Sul e Segunda Circular. Depois, estacionámos o carro a uns cem metros do palacete e Porfírio concordou que era boa táctica a que lhe propunha. Ficámos a bolachas ao longo de toda a tarde e de todo o serão. Já era noite avançada, quando o embarcadiço de Campolide foi à bagagem buscar o caixote. Disse-lhe, na altura, que se aproximava o tempo da maior vigilância; era quase uma da manhã e os ares davam-se à maior das expectativas. O meu coração começou a bater, talvez de raiva.
Vi passar um ou dois carros de clientes. Paravam lá mais à frente e desapareciam depois pelo quintal, em direcção às garagens. À uma e meia, o Porfírio abriu finalmente a porta, piscou-me o olho e, com a sua habitual energia, disse à polaca: vá, cá par fora! A rapariga saiu e seguiu até à parte de trás do carro com o gigante do meu amigo. Reparei o modo asiático como ele inspeccionou o que se passava na rua até que abriu o porta-bagagens; depois, num gesto ágil e rápido, encafuou aí a polaca, tapou-lhe a boca e fechou a portada. Vestimos então as luvas, tirámos o material do caixote e garanto que senti o coração a bater ainda com mais intensidade. Lembrava-me agora tão bem da cara do pirotécnico Alonso, do halo diabólico e prestável do mordomo catalão; ouvia agora tão bem a voz fina e misteriosa que me falava por dentro; sentia, enfim, com tanta nitidez a estranha e prestável solidariedade do embarcadiço Porfírio.
Até que saímos do carro com um ar o mais normal possível e, depois, corremos até aos morros de terra que rodeiam, em ligeira cumeada, as traseiras do quintal. Observámos as operações por trás de um eucalipto e a rotina era a habitual: clientes que chegavam e que subiam. Atrás das cortinas, reconhecia-se o movimento dos quartos e cheguei a desvendar claramente uma ou outra russa com que eu próprio lidara nas Tágides. O que é que estes gajos me tramaram? O que pensam eles que eu sou? Por fim, foi já perto das duas da manhã que vi o mercedes preto meio blindado do Correia a entrar pelo quintal, debaixo dos arbustos. Deitei-me então atrás do muro e levantei a cabeça no hora h para observar o quadro.
Quando um dos garçons abriu a porta de trás do carro, apareceu o chefe dos Coimbras - era um tipo alto e magro com aspecto ministeriável. Do lugar do condutor surgiu, quase ao mesmo tempo, o Correia, vestido de blusa preta e lanterna apagada na mão. Até que... da porta dos fundos eu vi com os meus olhos e não me enganei; até que vi, repito, com os meus próprios olhos a Sara em pessoa, a sorrir, dirigindo-se ao chefe e beijando-o na boca. Eu vi e atirei-me ao chão. O Porfírio, por perto, mandou-me calar, que me acalmasse, que tivesse cuidado. Voltámos a subir aos morros e, em poucas palavras, contei tudo, de fio a pavio, ao Gigante de Campolide. Minutos depois, e já devidamente municiados, avançámos com vagar até ao muro e esperámos a altura exacta para agir.
Eram duas e vinte da manhã, quando Porfírio atingiu por trás o guarda-costas com um soco banguecoquiano. Seguimos depois sob os arbustos e heras pelo lado direito do palacete, correndo devagar e mantendo o corpo dobrado até à altura dos parapeitos das janelas. As sombras pareciam cobrir os nossos movimentos e o meu coração estrondeava e bramia de raiva; como podia aquela puta ter falado em paixão, em falinhas mansas com o Correia, em reformar a Rua das Flores? A gaja já, nessa altura, me andava a enganar e a tramar! Pelo menos, de alguma coisa me serviu o raio da polaca! Junto à porta de vidro que dá para o relvado, Porfírio fez-me um gesto breve e parámos os dois atrás dos frisos da parede.
Nesse instante abriu-se a porta de vidro e, de dentro do palacete, Sara saiu abraçada pelo tipo bem parecido, alto e magro. A voz dele era, de facto, a do gajo que me mandara torturar em Monsanto. Não havia dúvida... e poder agora ouvir com clareza o que ela lhe dizia, agarrada ao pescoço de girafa - Que estava parvamente apaixonada, que a uma pessoa com a vida dela... isso nunca antes tinha acontecido, que concordava... podíamos até dar uma volta ao mundo, etc. Num dado momento, aproximaram-se os dois da piscina e ali ficaram, de pé, durante alguns minutos, confidenciando traições e desejos, volúpias e insídias. Olhei para cima e o céu estava negro. Cheguei a pensar nos belos tratos da água da piscina, mas o Porfírio, mais lúcido, advertiu-me que a sala, por dentro, devia estar cheia de gente. Estaria mesmo?
Quando, segundos depois, por trás, o alarme foi dado - a nossa inocência foi não termos logo liquidado o guarda-costas - Porfírio disparou imediatamente sobre o chefe e eu corri e agarrei na puta da Sharon Stone, antes baleada num pé pela minha feliz pontaria. Tentámos ainda fugir pelo portão da frente do quintal até ao carro, mas, em pleno passeio aberto da Gago Coutinho, tornámo-nos em presa fácil para o enraivecido bando dos Coimbras. Porfírio ainda conseguiu fugir, ferido numa perna. Sara morreu no tiroteio. E quanto a mim, poderão ainda adivinhar o resto da história?
Júlia foi a mais rápida a tentar esboçar uma reacção.
- Para que cemitério é que foi enviado, desta vez?
- Eu vou sempre para os Prazeres, já se sabe. Mas, desta feita, antes ainda do funeral, apareci sentado num dos jardins do Paço do Lumiar. Nesse instante, eu olhava para cima e o céu já não era negro, juro. Estava tudo vermelho; era como se se estivesse a viver uma autêntica aurora boreal e, por dentro dos meus ouvidos, uma voz fina e misteriosa dizia-me: Sai, sai, sai desta cidade. E eu fui andando, andando; é verdade que durante quilómetros e quilómetros andei. Estranhamente, antes de sairmos do carro, eu tinha ficado no bolso com uma das carteiras que o Porfírio pousara sobre o tablier. Já depois de S. António de Cavaleiros, no meio do campo e cheio de fome, sobretudo exausto de mim e de tantas vidas sem nexo, verifiquei que a dita carteira estava cheia de cheques. Nem tudo parecia correr mal.
Quase ao fim da noite, roubei uma motorizada e fugi em direcção ao Cabo da Roca. Queria ver o mar, algo de insondável para lá me empurrava; era como se sentisse no meu destino as histórias de Preste e de Porfírio. Contudo, se desta vez me descobrissem, talvez fosse dado como assassino, pois, embora a escassas horas de ser enterrado, a polícia ainda decerto desconhecia o número exacto dos assaltantes que se haviam envolvido no tiroteio junto ao palacete e eu, pelo meu lado, mantinha a mesma fisionomia de um dos meliantes, assim como a falsa identidade que comprara em Barcelona.
Cheguei ao mar e perdi-me em lágrimas. Nem a traineira, ao fundo da íngreme encosta, me aquietou o espírito, ou me conformou o indomável monstro que eu sentia ser. Que iria ser da minha vida? Mas de que vida? Por que não morreria eu de vez, ao contrário de todos os mortais? Por que não me chamaria para o inferno a mulher paradisíaca de Ibn Wahb?
Subitamente... dei por mim a olhar, de modo fugaz, para a brevíssima luz daquela traineira meio fantasma que, entre o breu absoluto deste ocidental mar português, agora se perdia na escuridão da noite.
Na falésia deste abismado cabo, tão longe e ao mesmo tempo tão perto, diante do meu olhar inconformado, aquela barca distante agitava-me a consciência, assim como agitava as enigmáticas correntes do mar de tanta saudade. Nesse momento - como se algo de fundamental se passasse dentro de mim - eu senti de repente todo o silêncio, toda a mudez inexplicável do extremo mais extremo da Europa.
Era o concerto do mundo, o grande relógio da vida.
Por que estaria eu ali, afinal?
Isabel pareceu entender esta última pergunta e disse:
- Olhe, Abel, o azar é sempre o azar dos heróis, mas a ventura, essa, é, também, sempre a ventura dos heróis.
A ventura, avançou entretanto o narrador, é uma forma felicidade. Mas é a forma de felicidade que mais próxima está da desventura, como o cabo está do seu mar e as vidas estão umas das outras.
Seja a de Adão, de Caim ou a de Abel.
No dia seguinte, seguimos para Porto Brandão no carro de um primo de Porfírio, emigrante nos longínquos petróleos da Líbia. Atravessámos a ponte e, a uns metros da entrada na aldeia, estacionámos a viatura e seguimos a pé pela ruela sem vivalma onde se erguem, meio secretas, as Tágides de Ulisses. Porfírio bateu à porta e, passados alguns momentos, surgiu uma das polacas que, talvez de modo imprudente, acabou por abrir a porta. Apareci de imediato e a reacção da rapariga foi de estertor, de desmedido pânico. Mas porquê? Perguntei eu. Rapidamente, percebi que algo de muito estranho se estava a passar... a avaliar até pelo aspecto da casa.
Estava tudo desarrumado, encardido; sentia-se um cheiro a fechado e a velho; havia copos partidos no chão, toalhas a cobrirem móveis, espinhas de peixe sobre a estante e pó por todo o lado. - Que é que se passou, rapariga? Mas a polaca tremia e apenas era capaz de dizer que tinha ali ido por causa de um senhor... e mais não conseguia transmitir, tal era o nervoso e sobretudo o medo. Olhava para nós como se fôssemos fantasmas, como se jamais ali pudéssemos ter aparecido. Empurrámo-la à força para dentro do carro e seguimos para a casa do primo do Porfírio, na parte de cima da Rua de Cruz de Alcântara. Interrogámos então a rapariga, mas não dizia palavra que se visse; até que com a ajuda de algumas festinhas mais agridoces lá contou tudo o que queríamos saber.
Sim, e a questão agora era esta: onde é que estava Sara? Não, afinal não estava em Barcelona, estava ainda cá... Voltámos rapidamente ao carro e corremos a toda a velocidade para a Gago Coutinho, através do frenesi terrível do trânsito de Lisboa, via eixo Norte-Sul e Segunda Circular. Depois, estacionámos o carro a uns cem metros do palacete e Porfírio concordou que era boa táctica a que lhe propunha. Ficámos a bolachas ao longo de toda a tarde e de todo o serão. Já era noite avançada, quando o embarcadiço de Campolide foi à bagagem buscar o caixote. Disse-lhe, na altura, que se aproximava o tempo da maior vigilância; era quase uma da manhã e os ares davam-se à maior das expectativas. O meu coração começou a bater, talvez de raiva.
Vi passar um ou dois carros de clientes. Paravam lá mais à frente e desapareciam depois pelo quintal, em direcção às garagens. À uma e meia, o Porfírio abriu finalmente a porta, piscou-me o olho e, com a sua habitual energia, disse à polaca: vá, cá par fora! A rapariga saiu e seguiu até à parte de trás do carro com o gigante do meu amigo. Reparei o modo asiático como ele inspeccionou o que se passava na rua até que abriu o porta-bagagens; depois, num gesto ágil e rápido, encafuou aí a polaca, tapou-lhe a boca e fechou a portada. Vestimos então as luvas, tirámos o material do caixote e garanto que senti o coração a bater ainda com mais intensidade. Lembrava-me agora tão bem da cara do pirotécnico Alonso, do halo diabólico e prestável do mordomo catalão; ouvia agora tão bem a voz fina e misteriosa que me falava por dentro; sentia, enfim, com tanta nitidez a estranha e prestável solidariedade do embarcadiço Porfírio.
Até que saímos do carro com um ar o mais normal possível e, depois, corremos até aos morros de terra que rodeiam, em ligeira cumeada, as traseiras do quintal. Observámos as operações por trás de um eucalipto e a rotina era a habitual: clientes que chegavam e que subiam. Atrás das cortinas, reconhecia-se o movimento dos quartos e cheguei a desvendar claramente uma ou outra russa com que eu próprio lidara nas Tágides. O que é que estes gajos me tramaram? O que pensam eles que eu sou? Por fim, foi já perto das duas da manhã que vi o mercedes preto meio blindado do Correia a entrar pelo quintal, debaixo dos arbustos. Deitei-me então atrás do muro e levantei a cabeça no hora h para observar o quadro.
Quando um dos garçons abriu a porta de trás do carro, apareceu o chefe dos Coimbras - era um tipo alto e magro com aspecto ministeriável. Do lugar do condutor surgiu, quase ao mesmo tempo, o Correia, vestido de blusa preta e lanterna apagada na mão. Até que... da porta dos fundos eu vi com os meus olhos e não me enganei; até que vi, repito, com os meus próprios olhos a Sara em pessoa, a sorrir, dirigindo-se ao chefe e beijando-o na boca. Eu vi e atirei-me ao chão. O Porfírio, por perto, mandou-me calar, que me acalmasse, que tivesse cuidado. Voltámos a subir aos morros e, em poucas palavras, contei tudo, de fio a pavio, ao Gigante de Campolide. Minutos depois, e já devidamente municiados, avançámos com vagar até ao muro e esperámos a altura exacta para agir.
Eram duas e vinte da manhã, quando Porfírio atingiu por trás o guarda-costas com um soco banguecoquiano. Seguimos depois sob os arbustos e heras pelo lado direito do palacete, correndo devagar e mantendo o corpo dobrado até à altura dos parapeitos das janelas. As sombras pareciam cobrir os nossos movimentos e o meu coração estrondeava e bramia de raiva; como podia aquela puta ter falado em paixão, em falinhas mansas com o Correia, em reformar a Rua das Flores? A gaja já, nessa altura, me andava a enganar e a tramar! Pelo menos, de alguma coisa me serviu o raio da polaca! Junto à porta de vidro que dá para o relvado, Porfírio fez-me um gesto breve e parámos os dois atrás dos frisos da parede.
Nesse instante abriu-se a porta de vidro e, de dentro do palacete, Sara saiu abraçada pelo tipo bem parecido, alto e magro. A voz dele era, de facto, a do gajo que me mandara torturar em Monsanto. Não havia dúvida... e poder agora ouvir com clareza o que ela lhe dizia, agarrada ao pescoço de girafa - Que estava parvamente apaixonada, que a uma pessoa com a vida dela... isso nunca antes tinha acontecido, que concordava... podíamos até dar uma volta ao mundo, etc. Num dado momento, aproximaram-se os dois da piscina e ali ficaram, de pé, durante alguns minutos, confidenciando traições e desejos, volúpias e insídias. Olhei para cima e o céu estava negro. Cheguei a pensar nos belos tratos da água da piscina, mas o Porfírio, mais lúcido, advertiu-me que a sala, por dentro, devia estar cheia de gente. Estaria mesmo?
Quando, segundos depois, por trás, o alarme foi dado - a nossa inocência foi não termos logo liquidado o guarda-costas - Porfírio disparou imediatamente sobre o chefe e eu corri e agarrei na puta da Sharon Stone, antes baleada num pé pela minha feliz pontaria. Tentámos ainda fugir pelo portão da frente do quintal até ao carro, mas, em pleno passeio aberto da Gago Coutinho, tornámo-nos em presa fácil para o enraivecido bando dos Coimbras. Porfírio ainda conseguiu fugir, ferido numa perna. Sara morreu no tiroteio. E quanto a mim, poderão ainda adivinhar o resto da história?
Júlia foi a mais rápida a tentar esboçar uma reacção.
- Para que cemitério é que foi enviado, desta vez?
- Eu vou sempre para os Prazeres, já se sabe. Mas, desta feita, antes ainda do funeral, apareci sentado num dos jardins do Paço do Lumiar. Nesse instante, eu olhava para cima e o céu já não era negro, juro. Estava tudo vermelho; era como se se estivesse a viver uma autêntica aurora boreal e, por dentro dos meus ouvidos, uma voz fina e misteriosa dizia-me: Sai, sai, sai desta cidade. E eu fui andando, andando; é verdade que durante quilómetros e quilómetros andei. Estranhamente, antes de sairmos do carro, eu tinha ficado no bolso com uma das carteiras que o Porfírio pousara sobre o tablier. Já depois de S. António de Cavaleiros, no meio do campo e cheio de fome, sobretudo exausto de mim e de tantas vidas sem nexo, verifiquei que a dita carteira estava cheia de cheques. Nem tudo parecia correr mal.
Quase ao fim da noite, roubei uma motorizada e fugi em direcção ao Cabo da Roca. Queria ver o mar, algo de insondável para lá me empurrava; era como se sentisse no meu destino as histórias de Preste e de Porfírio. Contudo, se desta vez me descobrissem, talvez fosse dado como assassino, pois, embora a escassas horas de ser enterrado, a polícia ainda decerto desconhecia o número exacto dos assaltantes que se haviam envolvido no tiroteio junto ao palacete e eu, pelo meu lado, mantinha a mesma fisionomia de um dos meliantes, assim como a falsa identidade que comprara em Barcelona.
Cheguei ao mar e perdi-me em lágrimas. Nem a traineira, ao fundo da íngreme encosta, me aquietou o espírito, ou me conformou o indomável monstro que eu sentia ser. Que iria ser da minha vida? Mas de que vida? Por que não morreria eu de vez, ao contrário de todos os mortais? Por que não me chamaria para o inferno a mulher paradisíaca de Ibn Wahb?
Subitamente... dei por mim a olhar, de modo fugaz, para a brevíssima luz daquela traineira meio fantasma que, entre o breu absoluto deste ocidental mar português, agora se perdia na escuridão da noite.
Na falésia deste abismado cabo, tão longe e ao mesmo tempo tão perto, diante do meu olhar inconformado, aquela barca distante agitava-me a consciência, assim como agitava as enigmáticas correntes do mar de tanta saudade. Nesse momento - como se algo de fundamental se passasse dentro de mim - eu senti de repente todo o silêncio, toda a mudez inexplicável do extremo mais extremo da Europa.
Era o concerto do mundo, o grande relógio da vida.
Por que estaria eu ali, afinal?
Isabel pareceu entender esta última pergunta e disse:
- Olhe, Abel, o azar é sempre o azar dos heróis, mas a ventura, essa, é, também, sempre a ventura dos heróis.
A ventura, avançou entretanto o narrador, é uma forma felicidade. Mas é a forma de felicidade que mais próxima está da desventura, como o cabo está do seu mar e as vidas estão umas das outras.
Seja a de Adão, de Caim ou a de Abel.
e
Fim da Segunda Parte
e
(continua)