domingo, 6 de novembro de 2005

Folhetim

O Trevo de Abel – Episódio 23
Segunda Parte – O tempo de Adão
Folhetim do Miniscente
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As Tágides de Ulisses, no lado lisboeta, começaram a fracassar a dada altura. Boicote, falta de contactos, denúncias, cercos, má fama, quebra na discrição, tudo era possível. Passados cerca de dois meses sobre o famoso jantar de Cascais, já o Outono ia dando sinais de si, Sara, imperiosa, sempre ágil e sobretudo após mais uma noite das antigas, disse que era necessário repensar as coisas, mudar, reformar. De roupão vermelho e longa boquilha de prata alagada em batom, Sara falou então da desistência do contabilista, da derrapagem do circuito de Barcelona, da crise das viagens das putas - sobretudo polacas - e até da própria moleza e negligência de Caim para impor disciplina na outra Banda, embora aí, diga-se a verdade, não faltasse mercadoria por enquanto.
- Vamos ter que fechar isto aqui, é muita massa para nada, pensou em voz alta. Aliás, acho que devíamos fazer como fizeram o Coimbra e o Garcia, ou seja, ir ao Oriente buscar fornecimento a prazo para não andarmos sempre armados em agência de viagens, senão, daqui a pouco, vale-me mais a pena voltar para a cirurgia plástica. Caim levantou-se, atirou o copo para o chão e pensou em voz baixa que - A mim não me metes tu medo; lá porque me deste a mão, também ma podes tirar, mas não tens razão de queixa, pois se a coisa começou a falhar... até é mais do teu lado do que do meu. - Mas... quem teve a ideia de trazer para cá material europeu foste tu, mais os aviões e o diabo. Eu, por mim, comecei só por Porto Brandão e a coisa até se safava como deve ser. Não podemos andar a comer lagosta com caril todos os dias e pagar ao mesmo tempo a massa que pagamos ao sistema! Mas... lá por isso eu ponho-me a caminho de Singapura ou de Hong Kong... é que vim a saber, quer dizer... houve um tipo dos do Coimbra que me disse que... - Ah, então andas com falinhas mansas com essa gente, não é? - Ora, e tu também não vens aos jantares? - Mas vou contigo, sempre te fui leal e fui eu quem te pôs neste mundo das putas. Sem mim, fugido como andavas - ainda se há-de saber a quê - devias estar agora nas ruas da amargura, nunca te esqueças disso! - Olha, dissemos que nunca havíamos de tocar nisso e tu já estás aí a levantar cabelo e a dar o dito pelo não dito! - Mas não havíamos de tocar no quê? - No passado, coño, no passado! Mas... o que é o raio do passado, se, só aqui entre nós, o que começamos a notar agora é a imensa dificuldade em dar conta do presente e do futuro? Como é que vamos pagar, por exemplo, às moças que estão, hoje e aqui, a dormir nesta casa? Não temos dinheiro, Caim, está quase no fim a massa; põe-me esses pés na terra de vez! - E tu... até parece que sou eu quem quer sempre andar a viajar e a comer fora que nem uma desalmada! - Não interessa, o que te digo é que é preciso reformar. Por mim, fechava já esta casa e passávamos para a outra banda. E mais: vamos mas é procurar mulheres a outro lado, prontos.

Ao fim de duas horas a decisão estava tomada: nem mais uma puta para a Rua das Flores. O alarido entre as meninas foi grande e, passados dois dias, toda a Lisboa sabia do escândalo. - Com a mão-de-obra não se brinca, dizia o ajudante dos Coimbras ao Dr. José, o pseudónimo forte de Caim. - É pá, tivemos que fechar aquela merda para poupar... e o que é que querias? Tratamento vip para as gajas, não podia ser. - Mas é que com essa forma de agir pagam vocês e pagamos nós; olha que há muita boa gente metida nisto, pá! Os dois homens vão de Mercedes preto meio blindado, ao longo da Avenida Infante D. Henrique, percorrendo a rota oriental da Expo-98. Cotovelos de fora, tatuagens ao alto, óculos escuros, cárie por tratar e vozes moles ostentando domínio e desaire ao mesmo tempo. - E depois há outra coisa que para aí se diz, pá. Isto de pôr mulheres a dirigir putas só nas novelas brasileiras ou lá para os haréns de Paris, ou o diabo. Desculpa dizer-te isso, mas tu devias afastar aquela gaja. Não te estou a dizer para te juntares à gente, até porque pagas a massa ao sistema e tudo. Mas... devias ver que nestas coisas, não se pode funcionar estilo família de sacrista, marido e mulher, estás a ver? Eu também tenho a minha senhora, aliás bem governada, mas no que toca a trabalho é só comigo, ó mano, mais nada. Mas da tua vida... o amigo é que sabe, como se costuma dizer para aí na gíria...
- Isso, ó Correia, é uma longa história. Nem posso contar tudo, nem quero. - De acordo, pá... pois, cada um sabe de si, já dizia o meu velhote que Deus tem! - É verdade, mas há coisas que um gajo não consegue dar a volta só porque vê que é mesmo assim! Um gajo também tem que ser inteligente, puxar pela cachimónia, perceber as linhas com que o seu caminho se cose. Vocês já cá estavam todos a trabalhar quando aqui apareci. Se calhar, se não fosse português ou o caraças, já nem estava neste mundo. Já estava para além de Bagdad. Mas agora, que tenho o negócio instalado e reformado como deve ser, tenho que olhar em frente e não posso estar a mudar o mundo à minha vontade e maneira. Como a minha avó dizia, ‘hoje há seca e não há peixe miúdo, amanhã há chuva e já não há graúdo’! - Estou a ver o que queres dizer, estou a ver. Bom vamos até ali ao Montijo comer umas enguias, não? - Vamos lá, porque, daqui a umas duas horitas, tenho que ir ter com a patroa ao nosso Porto Bello.

Porto Brandão é, de facto, uma dessas terras que poderiam estar resguardadas numa baía seca e calma de Cabo Verde. Daqui olha-se para o vasto rio das descobertas com a lenta consolação da saudade e com a confiada perdição do encantamento. Até altas horas, nos três quartos do primeiro andar, as últimas louras dos Urais recebem, já não a estirpe dos negócios, mas uma classe média meio perdida, com BMWs a leasing e whiskies e bagaceiras, de manhã à noite, sobretudo para enganarem o vazio, as mulheres com que há muito casaram e a inutilidade que os fustiga. Às vezes, armam escândalo nas subidas para Almada, ou a bordo dos cacilheiros. Com fachada de pub/boite, coisa reservada e bastante cara no preçário, as Tágides de Ulisses estão protegidas pelos trinta por cento de lucro, mais ou menos avaliados nos encontros mensais com os Garcias e Coimbras, o que abrange legalização, polícia e livre contrabando de mulheres. Sem o dito imposto, toda a máquina pode desmoronar a qualquer momento. A utilização apenas da casa de Porto Brandão acabou com as dificuldades que existiam em pagar a dita taxa, mas, de qualquer modo, a decisão de ir ao Oriente buscar sangue novo acabaria por ser tomada já a meio do Outono, numa noite de muita clientela e pouca menina. A própria Sara teve então que entrar em cena nos quartos e Caim, ao contrário do que acontecera até então, sentiu-se vexado, traído, cornudo (vá-se lá saber porquê!). Após a normal função, e até quase ao nascer do sol, Sara riu-se da meninice de Caim e este disse e redisse que queria uma coisa a sério e não, como passou a noite toda a repetir,
- ...Esta bandalhice em que as Tágides estão a cair... estás a perceber? É que não te quero ver mais a trabalhar! Faço o que for necessário, vou a Singapura, a Banguecoque ou a Hong-Kong, pá! Em Barcelona, no início, a coisa percebia-se, estávamos no início e conhecíamo-nos mal. Agora, porra, estamos ligados; estamos a fazer uma vida juntos. Nem sempre tudo pode correr da melhor forma, mas temos que ter o que eu chamo a lealdade mínima! - E o que é isso, ó Caim? - É isso mesmo, o mínimo, percebes? O mínimo dos mínimos e chega, pá, prontos! - Ouve-me lá agora a mim. Eu chego a adorar esse teu ciúme de fadista... mas tens que entender que não se trata de te humilhar ou de te trair; que diabo! Então, estamos a trabalhar no ramo e tu ainda te pões com pieguices de merda? Se estava ali um gajo que é um cliente do caraças e apenas queria o que tu sabes - coitado, não é capaz de mais -, é evidente que tive que o segurar, senão daqui a pouco não temos vivalma! - É pá, tens razão, mas tinha que desabafar. Há coisas assim que um gajo sente e, pronto, tem que as dizer; já não se fala mais no assunto, já não se bate mais no ceguinho. - E como é que é isso do Oriente? A quem pagamos os contactos, ao Correia? Não confio lá muito nele, mas se tu até sais com ele... tu lá sabes. Eu não o chupo, não o topo, não gosto do olhar dele. - Isso é treta. O gajo já me disse que nos havia de fornecer os contactos. Do que trouxer... vai um terço para o gajo e apenas teremos que pagar em cash o equivalente a um mês e mais uns dias... para além disso, o gajo só conta metade ao chefe dos Coimbras. E, já agora, também te pergunto: que outras soluções temos nós? Metermo-nos outra vez em Barcelona? Olha, para lá... já não poderás voltar, pelo menos durante bastante tempo. Servirmo-nos do material local, sem a chama do exótico? Nem pensar. Conquistámos uma posição e temos que a manter, haja o que houver. Com o status não se brinca! -Então pronto, arrisco contigo e assino por baixo.
Nessa manhã, quando tentaram manter o jus aos recatos de Afrodite, a coisa voltou a falhar. Desta feita, Sara já não correu quilómetros e Caim, por sua vez, não se sentiu descorado e pálido. Aliás, já não era a segunda, nem a terceira vez. A vida, apesar de tudo, continuava; rotineira, sim, muito rotineira; mais empalidecida, demasiado normal; sempre aberta aos bancos de nevoeiro do Tejo: assim era... mesmo quando, de manhã, Caim se prostrava sentado no cais e se punha a imaginar, do outro lado do rio, na doca do Porto de abrigo, o majestoso corpo de ovareira da sua avó Maria Alba. - Como era bom que ela, desejada, aparecesse entre os mil nevoeiros, no coração desocultado desta mesma manhã, para me indicar o caminho, o destino, a direcção, a estrada, a estrelinha certa da minha sorte agora ausente!