quarta-feira, 2 de novembro de 2005

Folhetim

O Trevo de Abel - Episódio 19
Segunda Parte: O tempo de Adão
Folhetim do Miniscente
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Caim acordou tarde, sentou-se na cama e fumou um cigarro. Pelos vidros meio foscos das águas-furtadas, a luz espalha-se pelo quarto até à franja do tapete que tem desenhado um dragão de língua em sangue. Por cima, os veludos tapam o resto de uma antiga porta e iludem os ruídos pungentes que vêm, paredes meias, da vizinhança. Depois da preguiça e da evocação involuntária da sua filha, Caim levantou-se, esticou os braços, bocejou e entrou na casa de banho, dominada por prateleiras de vidro meio vazias, por cima de mil e um frascos de perfume alinhados numa mesinha de mogno escuro. Foi há duas semanas que tudo me aconteceu. Quem haveria de dizer que, depois disso, eu viveria! Como explicar a mim próprio que tive frieza e reflexos suficientes para vir a Barcelona mudar de rosto, depois de procurar meios e fôlego interior para o fazer? Como compreender o modo como Sara me apareceu, depois da sorte que tive com o mordomo do Hotel Oriental e até com a venda dos pequenos boxeurs? A casa é curta, estreita, atarracada, mas está preenchida com memórias fotográficas, logo à entrada da cozinha. Por trás da mesa, surge o Cristo de plástico insuflado, postais de Kama Sutra, retratos tirados em congressos de medicina, moinhos flamengos para café e muitos tabuleiros, grandes e pequenos, com motivos da cidade de Gaudí. Após a breve lavagem dos dentes, Caim leu as instruções de Sara e bateu com a porta, antes de descer os quatro andares das escadarias até à exígua Calle Escudellers que une o início da Rambla dos Caputxins à Praça de S. Miquel.
E assim se viu Caim a vaguear, com inesperada calma, por uma Barcelona de céu azul, benévola, boa anfitriã, e, talvez por isso, o nosso homem não pare de perguntar a si próprio se tem realmente genes de chulo, de acrobata da vida, ou se tudo isto não passa afinal de simples bonança que o atingiu, após a recente tempestade da sua vida? Sabê-lo-á talvez o destino, pensou. Caim percorre agora a Praça Real em diagonal, depois de ter deixado o apartamento de Sara que, por sua vez, partiu muito cedo à procura de meninas eslavas e outras. A cor ocre salmão das sacadas parece evocar os óptimos restaurantes de peixe que se alongam no lado oriental da geométrica praça. À volta, as palmeiras têm troncos muito altos e copas frondosas, esféricas, abertas ao prenúncio de perpétua Primavera. Que esconderá a fortuna por trás das auspiciosas senhas que acompanham estes primeiros passos verdadeiramente descontraídos de Caim?
E que será feito da Luísa e da filha e da lembrança da mãe Marieva e da avó Maria Alba e de toda a gente do ‘Limões e Biliões’ e até dos êxtases quase místicos da Arlete da Bica? Onde estou eu afinal, nesta fortuna em que vou rodando, lenta, lentamente, qual triciclo com que dantes descia as Escadinhas da Praia até à 24 de Julho para apanhar o eléctrico de Algés ou da Cruz Quebrada e aí namoriscar a filha do motorista do engenheiro que tinha treze anos, menos um do que eu? Que tempos são esses, lá ao longe, sem ancoradouro, sem perspectiva, sem ponte ou nexo para estes que se tornaram abruptamente irreais, mortos ou vivos, de limbo ou de carne ? Nem sei como responder a tais perguntas diante das paredes da Carrer Ample, paralelas que são à linha do mar de Colombo e que me conduzem agora a um bar cheio de tapas e de presunto de pata negra.
Chego à esquina da Calle Plata e entro no bar. O nome agrada e o papel da almaço onde estão escritas as tapas com marcador azulado também. Por trás do balcão aparece então um desses figurantes dos contos medievais mais intempestivos de Chaucer. Bebo cervejas e falamos os dois acaloradamente; ele é uruguaio e do Peñarol de Montevideo, mas fala-me do Benfica e diz que viu, há temporadas remotas e com os seus próprios olhos, o Eusébio, o Coluna, o Costa Pereira, o José Augusto e o Cavém. Abre a imensa boca de onde saltam para a infinitude do mito dois dentes esticados e únicos, mais pareciam palitos por onde se soltam gafanhotos, charadas e o longo ferrão da amizade súbita que é afinal o prazer de poder contar comigo a ouvi-lo e eu a ele. Vêm miolos de borrego, tortilha, tomate com pão mergulhado em azeite; chouriço de sangue, rabo de touro e cerveja e mais cerveja. Sinto-me tonto, inebriado. Brinco aos nomes, invento a minha identidade, o meu passado. Que sou professor e turista, entre congressos e uma namorada a meio caminho; sim, é brasileira e de Porto Alegre que é para ser mais próxima e vizinha do meu interlocutor, ávido e excitado que se sente com a fuga ao seu silêncio rotineiro. E o uruguaio bebe comigo até surgir o patrão e depois afasta-se, mas juro que hei-de voltar, hei-de sim. Cá fora há tremulina no céu, a cidade balbucia, cintila diante dos meus olhos; passo entre tais vertigens pela coluna altíssima do santo Colombo e sigo depois pelas madeiras do passadiço que me põem no cais, ou na marina do Moll d´ Espanya. Guindastes e drugstores sobre o azul escurecido das águas onde falta a suavidade etérea da luz de Lisboa. E é então que decido fazer a tatuagem. A nova vida a isso obriga.
Sim, sim, é nesse sítio onde a agulha das vacinas deixou vestígios e sinais, nesse remanso de carne fofa onde a cabeleireira do avô, na sua catequese, gostava de me apalpar para a frente e para trás, enquanto as mamas lhe abanavam a fachada, o semblante, o diabo que a carregasse. O cenário do ritual é o Maremagum, entre magrebinos, caribes e mirones doutros portos mais a leste. E o sacerdote é um ex-punk, baixinho e de olhos muito azuis que me espeta, segundo a segundo, a epiderme. Peço o desenho da baleia, depois o peixe-faraó, por fim o belo sardo em forma de sargo, mas o que é afinal essa imagem? Arrepio-me, fecho os olhos, ouço gratinar palavras acerca de tipas meio passadas que abundam por aqui e que se vendem por soldo baixo, parece. Eu não, eu só passarei a trabalhar com gente fina, pensei orgulhoso. Se sou português do Brasil ? Pois claro, respondi eu sem indecisões, e do Recife, é evidente. Aí nasci e cresci, fiz-me engenheiro com motorista, cangalheiro depois socorrista, e acabei falido na bolsa de Caracas. Vim para Portugal como professor de geografia e agora estudo fósseis e corais, por isso viajei até Barcelona, está a perceber? Pelo menos, enquanto conto mais uma história da minha vida, menos dói o agulhete fino, embebido no meu sangue de segunda vida; se ele soubesse tatuava-me antes a minha alma que arde, poderosa, em sigilo inquieto. Ao fim de largos minutos, a obra terminou e eu fiquei de sardo desenhado no braço, com duas barbatanas que parecem cabeças e um tronco comprido tipo zepelim alongado na ponta, de orifício muito estreito parecido aos olhos dos insectos do Atlas.
Sentia que a tarde era magnífica, ao subir a primeira das Ramblas, a de Santa Mónica. Sentia que estava a mudar, não havia dúvida. Sentia impulsos e ímpetos estranhos. Apetecia-me devorar o mundo, os limites do mundo. Sentia-me um gigante a explodir no meu próprio corpo agora transformado, reencarnado. Apetecia-me a rota de uma loucura sem freio e sem jugos. Passadas três horas, foi neste estado que voltei a encontrar a Sara acompanhada de duas Natachas muito altas, novas e lindas, qual delas a melhor. Nem falavam ainda espanhol como devia ser, mas vinham contentes com a ideia de trabalharem em Lisboa já a partir de Junho, mês dos santos populares. Aliás, o plano de Sara era dispor de seis grupos de três meninas bem tratadas que se revezassem todos os cinco dias. Uma parte desse objectivo estava, pois, cumprido e, para o comemorar, foi Sara quem nos guiou à Praça Real e o destino anunciado passou a ter como lema o nome das lagostas, lagostins, caranguejolas, ameijoas e sobretudo dos camarões tigre.
É bela a vida em Barcelona, após a intempérie da segunda vida inexplicável. Mas isso apenas Caim a si segreda, ou melhor, já Abel narra, neste mesmo momento, aos doze do Príncipe Real.