O Trevo de Abel – Episódio 18
Segunda Parte – O tempo de Adão
Folhetim do Miniscente
e
e
Segunda Parte – O tempo de Adão
Folhetim do Miniscente
e
e
A brancura do Palacete dos Anjos e o tom veneziano do Palácio de Ribeiro da Cunha parecem abraçar cedros e trepadeiras onde se demoram cotovias, gorgulhos, espinhos e sombras densíssimas, carregadas de memória. É o Príncipe Real lisboeta, esvaecido entre verdura vaga e bancos de madeira vermelha, dispostos no breu da longa noite em que Abel não consegue calar a sua longa, longa história. Nesta fototipia nocturna, autêntico clímax e cenário da sétima colina lisboeta, todos, de facto, ficaram pasmados com os volte-faces do relato de Abel. Sob a imensa árvore centenária que se apoia no caramanchão metálico, Zorba, estático e astuto, soube, apesar de tudo, manter as órbitas aquietas, contendo possivelmente um antigo furor. Isabel, alta e de sardas quase luminosas, constelação frágil e aparentemente doce, tentava estancar o sorriso com leveza, aliciada que estava pelo sussurro inquieto do repuxo do jardim.
Júlia, por seu lado, atenta ao violoncelo que sempre a animou, adiantou-se a Lopamudra de Vidarbha e perguntou se Abel também era, na realidade e ao mesmo tempo Caim. Sim, eu sou todos eles, o Adão, o Caim e o Abel. O primeiro, o vivo e o morto. Não tenham medo. A história, contudo, continua e acabará quando menos se espera, vos juro. Sobre o céu escuro do Príncipe Real, breves nuvens violetas cruzam a humidade da noite e os focos de luz eléctrica junto aos canteiros. Parecem juncos iluminados, aéreos, suspensos. Dona Joana abriu muito a boca e apoiou-se nos ombros de Gouveia. O deputado sorriu por confrangimento, talvez até por tormento. Os brasileiros e o senhor Brihadratha também não arriscaram palavra, olhando na direcção do sapateiro Palmeirim que, da sua voz fina, quase celestial, parecia querer concluir: - Com a palavra do novo nome ficou o Abel como finado, ao mesmo tempo que a pôde valer de vida até que por morta ainda a havemos de ouvir, disse. Abel sorriu como sempre e pediu atenção. A noite assim continuou.
Ao fim de três dias e três noites, Sara já havia visto os Jerónimos, o Castelo, a Graça, as avenidas novas, o Colombo, o Estádio da Luz, o Parque das Nações, a linha, a Caparica e todo o Monsanto. Adorara Lisboa, as colinas, o imprevisto; enfim, a intimidade de muitas pequenas cidades numa só. Na quarta noite, enquanto Sara fora às compras, Caim passou solitariamente pela casa da Marquês de Tomar e encontrou tudo devastado. Depois de muito cuidado para não ser visto à entrada, Caim vasculhou o soalho falso da sala de jantar e descobriu que o cofre havia desaparecido. Só umas horas mais tarde saiu dos muros da imensa casa, onde já não havia qualquer vestígio dos cavalos do Índico, do mobiliário da entrada e do grande escritório. Quando chegou ao hotel, Sara não conseguia dormir. O ar parecia agora adensar-se e as expectativas a diluírem-se, a esfumarem-se, até que, depois de uma discussão ainda insólita entre ambos, Sara ouviu dizer o que, para si, parecia ser uma história antiga, ou seja, que quase já não havia dinheiro sequer para o hotel. Os dois amantes de amor recente olharam-se com estranheza durante algum tempo, como se algo inevitavelmente tivesse que ser descortinado. Face a face, um alívio distante parecia submerso pela ameaça de mais um caminho em vão. De qualquer maneira, o jogo estaria todo ainda por abrir. E como?
Sara, numa atitude repentina e impulsiva, aproximou o rosto dos olhos de Caim e disse com um tom de súbito desafio: Olha, vamos fazer assim, amanhã saímos os dois de manhã e, à noite, quando nos encontrarmos, temos que ter a questão resolvida, aceitas? Caim ficou aterrado diante da descontracção de Sara e sorriu. Caíram depois sobre os lençóis abertos e voaram até à liquidez mais secreta e desejosa do corpo, entre a pele profunda e o sangue do primeiro báculo. De manhã, após um pequeno-almoço de mutismo e expectativa, despediram-se um do outro. Caim desceu a Rua do Ouro e passeou ao longo do rio a pensar no que fazer. Se havia de deixar para trás, de vez, este romance catalão... se havia de embarcar, trabalhar, fugir, morrer. Ao longe, a grande ponte abria-se entre margens, lugares fixos sem nome, abertura apenas. Foi então que, numa das lojas do Mercado da Ribeira, Caim viu a loja dos animais. Comprou por preço relativamente baixo dois pequenos boxeurs e voltou ao hotel. Ainda não eram onze da manhã, já Abel havia telefonado para os classificados de dois jornais com o anúncio: “Compram-se e vendem-se boxeurs puros e parisienses”. Caim sentou-se na cama, riu de si e dos cães; riu da falta de jeito para o negócio; riu do romance catalão, da operação e da morte que é vida e, se calhar, da vida que é morte ao mesmo tempo. Andou depois até às janelas do quarto, afastou as cortinas e pensou em Sara - O que a terá levado a propor-me este desafio? Quem é afinal esta mulher? Ah, que nem sei para lado me virar... e como vou eu pagar o hotel? Os cães, com muita dificuldade, subiram para a cama, morderam fronhas, alagaram o tapete e comeram em menos de nada duas latas de comida. Estóico, impávido, redescobrindo-se sempre outro, Caim ficou à janela durante horas. Ao fim da tarde veio comprar o jornal e leu o seu anúncio. Pouco depois, pôs-se o sol, a noite caiu e Caim pensou sinceramente que Sara havia partido de vez... munida de uma despedida imaginativa, é claro. Quando a meia-noite se aproximava, bateram à porta e, de rompante, Sara surgiu com outra roupa e com um olhar insinuantemente belo, provocante, mordaz.
Quando abriu a mala de mão, Sara retirou várias notas de dez mil escudos e riu-se, enquanto se rebolava na cama e, irónica, gritava - Ganhei, não ganhei, querido? Em vez de uma resposta pronta, viu antes a cara lambida por um dos cachorros. Cena caricata que culminou com a pergunta seca e decisiva de Caim: Onde arranjaste essa massa? Sara sorriu, espreguiçou-se e nem perguntou pelos cães; depois, levantou-se, tirou a saia e a blusa e, de modo calmo e sempre ameno, sentou-se com a perna ostensivamente trocada, diante do espelho do quarto e disse - Agora ouves-me e vais ter que ter calma, está bem? Caim sentou-se então na borda da cama, fixando o olhar na parede e na cómoda, e acabou por concordar. - Não te peço que me digas quem és e por que é que apareceste naquela clínica que é só para gente muito rica. Não acredito que empregasses o teu único e último dinheiro numa operação daquelas para depois... enfim me dizeres que estás teso. Poderás estar a fugir de qualquer coisa e podes até ter razão nos motivos por que foges. Não quero saber nada disso, mas, é claro que uma mulher normal que viesse contigo para Portugal como eu vim... acharia isto tudo tão estranho que havia de se pirar na primeira hipótese, não é? No entanto, comigo isso não aconteceu e sabes porquê? É que, naquela clínica, grande parte do pessoal ganha muito dinheiro, por outras vias, com os ricaços que lá aparecem. Só costumo abandonar Barcelona para variar um pouco a minha vida, acredita. Mas sou-te sincera: eu gostei e gosto de ti e acho mesmo que o nosso encontro tem algum encanto. Nessa altura, Sara levanta-se, senta-se na sanita e corta o silêncio apenas no momento em que conclui: É verdade, eu sempre fui o que tu dirias ser uma puta. Mas das finas... das que gostam de cachorrinhos boxeurs destes que não me largam.
Quando Sara reapareceu no quarto, Caim continuava sentado na extremidade da cama; olhos postos na cómoda, na parede, ou fosse onde fosse que o fizesse sentir ludibriado por tanta inacção; afinal Caim tinha posto os pés na terra, o preto no branco e o jogo estava decisivamente aberto. Antes assim. - Então e onde é que estiveste durante o dia todo? - No Fitz. Foi fácil, mas não me reduzas apenas a isso. Até te digo mais, claro, se me aceitares como eu sou. E fez-se um longo silêncio. Longo silêncio. – Podemos os dois... tentar começar qualquer coisa nova, uma vida diferente, não achas? Digo-to assim directamente, pois não me agradam os chulos que são apenas chulos. Quero sentir um pouco de paixão, ou chama-lhe o que quiseres. Tenho mesmo uma boa ideia que aliaria a minha necessidade de mudar... ao que sinto por ti. - E o que é? Só to digo se, em primeiro lugar, me disseres que me aceitas como eu sou. - Ó Sara, eu não estou em condições de recusar ou de aceitar seja o que for. Tu disseste bem... eu fujo de algo e não tenho, neste momento, qualquer dinheiro, casa, carro, o que imaginares. Diz-me, pois, qual é a tua ideia. Seres puta não me escandaliza, sabes? - Não, não sabia, fico a saber. É estranho como nos encontrámos e como nos continuamos a aceitar. Tudo isto parece bom de mais para ser verdade. Mas eu conto-te a ideia: trata-se de ir a Barcelona buscar umas eslavas, sem que os patrões de lá saibam ou sequer imaginem que as trazemos para cá. Era preciso fazer tudo muito bem feito. Eu própria me encarregaria dos contactos e havia de prometer a todas elas qualquer coisa de irrecusável. Depois, as raparigas viriam para cá, sem qualquer rasto... e, entretanto, teríamos de alugar uma casa para recebermos os clientes habituais do Fitz e doutros hotéis do género. A partir de certa altura, já com clientela fixa, limitar-nos-íamos a gerir a casa, sem que eu tivesse de sair e sem que tu tivesses de arriscar fosse o que fosse. Que tal?
Caim agarrou num dos cães, riu-se muito alto, deu uma cambalhota sobre a cama e disse, por fim, - Vamos a isso!
Mas quando o disse - continuava Abel na direcção do sapateiro Palmeirim - confesso que senti um ardor no lugar do peito. Foi como se, desde a cirurgia catalã, eu tivesse começado a sentir um ímpeto indescritível que me estava assolar. De facto, não era apenas o nome que mudara. De dentro, com força, sopravam agora aragens de urgência. Garanto que perdi um certo esmero nesta metamorfose lenta que eu sentia estar a ocorrer. A própria Sara, sempre o senti, tinha no olhar um - como hei-de dizer...- satanismo profundo que me prefigurava novos mundos, desafios, despiques. Eu sabia que caminhava para a frente, mas não em fuga, até porque era com muito mais velocidade. Sentia-me uma espécie de rastilho em fogo que me abismava, como se uma Deusa em plena ira me possuísse e me atiçasse a cumprir um destino impossível, corrosivo, incontestável.
No dia seguinte, apareceu um miraculoso comprador para os boxeurs. Caim vendeu-os e, com isso, pagou o hotel, os bilhetes de ida e volta a Barcelona e ainda um broche polvilhado de ouro que ofereceu à sua destemida e desejada Sara.
Júlia, por seu lado, atenta ao violoncelo que sempre a animou, adiantou-se a Lopamudra de Vidarbha e perguntou se Abel também era, na realidade e ao mesmo tempo Caim. Sim, eu sou todos eles, o Adão, o Caim e o Abel. O primeiro, o vivo e o morto. Não tenham medo. A história, contudo, continua e acabará quando menos se espera, vos juro. Sobre o céu escuro do Príncipe Real, breves nuvens violetas cruzam a humidade da noite e os focos de luz eléctrica junto aos canteiros. Parecem juncos iluminados, aéreos, suspensos. Dona Joana abriu muito a boca e apoiou-se nos ombros de Gouveia. O deputado sorriu por confrangimento, talvez até por tormento. Os brasileiros e o senhor Brihadratha também não arriscaram palavra, olhando na direcção do sapateiro Palmeirim que, da sua voz fina, quase celestial, parecia querer concluir: - Com a palavra do novo nome ficou o Abel como finado, ao mesmo tempo que a pôde valer de vida até que por morta ainda a havemos de ouvir, disse. Abel sorriu como sempre e pediu atenção. A noite assim continuou.
Ao fim de três dias e três noites, Sara já havia visto os Jerónimos, o Castelo, a Graça, as avenidas novas, o Colombo, o Estádio da Luz, o Parque das Nações, a linha, a Caparica e todo o Monsanto. Adorara Lisboa, as colinas, o imprevisto; enfim, a intimidade de muitas pequenas cidades numa só. Na quarta noite, enquanto Sara fora às compras, Caim passou solitariamente pela casa da Marquês de Tomar e encontrou tudo devastado. Depois de muito cuidado para não ser visto à entrada, Caim vasculhou o soalho falso da sala de jantar e descobriu que o cofre havia desaparecido. Só umas horas mais tarde saiu dos muros da imensa casa, onde já não havia qualquer vestígio dos cavalos do Índico, do mobiliário da entrada e do grande escritório. Quando chegou ao hotel, Sara não conseguia dormir. O ar parecia agora adensar-se e as expectativas a diluírem-se, a esfumarem-se, até que, depois de uma discussão ainda insólita entre ambos, Sara ouviu dizer o que, para si, parecia ser uma história antiga, ou seja, que quase já não havia dinheiro sequer para o hotel. Os dois amantes de amor recente olharam-se com estranheza durante algum tempo, como se algo inevitavelmente tivesse que ser descortinado. Face a face, um alívio distante parecia submerso pela ameaça de mais um caminho em vão. De qualquer maneira, o jogo estaria todo ainda por abrir. E como?
Sara, numa atitude repentina e impulsiva, aproximou o rosto dos olhos de Caim e disse com um tom de súbito desafio: Olha, vamos fazer assim, amanhã saímos os dois de manhã e, à noite, quando nos encontrarmos, temos que ter a questão resolvida, aceitas? Caim ficou aterrado diante da descontracção de Sara e sorriu. Caíram depois sobre os lençóis abertos e voaram até à liquidez mais secreta e desejosa do corpo, entre a pele profunda e o sangue do primeiro báculo. De manhã, após um pequeno-almoço de mutismo e expectativa, despediram-se um do outro. Caim desceu a Rua do Ouro e passeou ao longo do rio a pensar no que fazer. Se havia de deixar para trás, de vez, este romance catalão... se havia de embarcar, trabalhar, fugir, morrer. Ao longe, a grande ponte abria-se entre margens, lugares fixos sem nome, abertura apenas. Foi então que, numa das lojas do Mercado da Ribeira, Caim viu a loja dos animais. Comprou por preço relativamente baixo dois pequenos boxeurs e voltou ao hotel. Ainda não eram onze da manhã, já Abel havia telefonado para os classificados de dois jornais com o anúncio: “Compram-se e vendem-se boxeurs puros e parisienses”. Caim sentou-se na cama, riu de si e dos cães; riu da falta de jeito para o negócio; riu do romance catalão, da operação e da morte que é vida e, se calhar, da vida que é morte ao mesmo tempo. Andou depois até às janelas do quarto, afastou as cortinas e pensou em Sara - O que a terá levado a propor-me este desafio? Quem é afinal esta mulher? Ah, que nem sei para lado me virar... e como vou eu pagar o hotel? Os cães, com muita dificuldade, subiram para a cama, morderam fronhas, alagaram o tapete e comeram em menos de nada duas latas de comida. Estóico, impávido, redescobrindo-se sempre outro, Caim ficou à janela durante horas. Ao fim da tarde veio comprar o jornal e leu o seu anúncio. Pouco depois, pôs-se o sol, a noite caiu e Caim pensou sinceramente que Sara havia partido de vez... munida de uma despedida imaginativa, é claro. Quando a meia-noite se aproximava, bateram à porta e, de rompante, Sara surgiu com outra roupa e com um olhar insinuantemente belo, provocante, mordaz.
Quando abriu a mala de mão, Sara retirou várias notas de dez mil escudos e riu-se, enquanto se rebolava na cama e, irónica, gritava - Ganhei, não ganhei, querido? Em vez de uma resposta pronta, viu antes a cara lambida por um dos cachorros. Cena caricata que culminou com a pergunta seca e decisiva de Caim: Onde arranjaste essa massa? Sara sorriu, espreguiçou-se e nem perguntou pelos cães; depois, levantou-se, tirou a saia e a blusa e, de modo calmo e sempre ameno, sentou-se com a perna ostensivamente trocada, diante do espelho do quarto e disse - Agora ouves-me e vais ter que ter calma, está bem? Caim sentou-se então na borda da cama, fixando o olhar na parede e na cómoda, e acabou por concordar. - Não te peço que me digas quem és e por que é que apareceste naquela clínica que é só para gente muito rica. Não acredito que empregasses o teu único e último dinheiro numa operação daquelas para depois... enfim me dizeres que estás teso. Poderás estar a fugir de qualquer coisa e podes até ter razão nos motivos por que foges. Não quero saber nada disso, mas, é claro que uma mulher normal que viesse contigo para Portugal como eu vim... acharia isto tudo tão estranho que havia de se pirar na primeira hipótese, não é? No entanto, comigo isso não aconteceu e sabes porquê? É que, naquela clínica, grande parte do pessoal ganha muito dinheiro, por outras vias, com os ricaços que lá aparecem. Só costumo abandonar Barcelona para variar um pouco a minha vida, acredita. Mas sou-te sincera: eu gostei e gosto de ti e acho mesmo que o nosso encontro tem algum encanto. Nessa altura, Sara levanta-se, senta-se na sanita e corta o silêncio apenas no momento em que conclui: É verdade, eu sempre fui o que tu dirias ser uma puta. Mas das finas... das que gostam de cachorrinhos boxeurs destes que não me largam.
Quando Sara reapareceu no quarto, Caim continuava sentado na extremidade da cama; olhos postos na cómoda, na parede, ou fosse onde fosse que o fizesse sentir ludibriado por tanta inacção; afinal Caim tinha posto os pés na terra, o preto no branco e o jogo estava decisivamente aberto. Antes assim. - Então e onde é que estiveste durante o dia todo? - No Fitz. Foi fácil, mas não me reduzas apenas a isso. Até te digo mais, claro, se me aceitares como eu sou. E fez-se um longo silêncio. Longo silêncio. – Podemos os dois... tentar começar qualquer coisa nova, uma vida diferente, não achas? Digo-to assim directamente, pois não me agradam os chulos que são apenas chulos. Quero sentir um pouco de paixão, ou chama-lhe o que quiseres. Tenho mesmo uma boa ideia que aliaria a minha necessidade de mudar... ao que sinto por ti. - E o que é? Só to digo se, em primeiro lugar, me disseres que me aceitas como eu sou. - Ó Sara, eu não estou em condições de recusar ou de aceitar seja o que for. Tu disseste bem... eu fujo de algo e não tenho, neste momento, qualquer dinheiro, casa, carro, o que imaginares. Diz-me, pois, qual é a tua ideia. Seres puta não me escandaliza, sabes? - Não, não sabia, fico a saber. É estranho como nos encontrámos e como nos continuamos a aceitar. Tudo isto parece bom de mais para ser verdade. Mas eu conto-te a ideia: trata-se de ir a Barcelona buscar umas eslavas, sem que os patrões de lá saibam ou sequer imaginem que as trazemos para cá. Era preciso fazer tudo muito bem feito. Eu própria me encarregaria dos contactos e havia de prometer a todas elas qualquer coisa de irrecusável. Depois, as raparigas viriam para cá, sem qualquer rasto... e, entretanto, teríamos de alugar uma casa para recebermos os clientes habituais do Fitz e doutros hotéis do género. A partir de certa altura, já com clientela fixa, limitar-nos-íamos a gerir a casa, sem que eu tivesse de sair e sem que tu tivesses de arriscar fosse o que fosse. Que tal?
Caim agarrou num dos cães, riu-se muito alto, deu uma cambalhota sobre a cama e disse, por fim, - Vamos a isso!
Mas quando o disse - continuava Abel na direcção do sapateiro Palmeirim - confesso que senti um ardor no lugar do peito. Foi como se, desde a cirurgia catalã, eu tivesse começado a sentir um ímpeto indescritível que me estava assolar. De facto, não era apenas o nome que mudara. De dentro, com força, sopravam agora aragens de urgência. Garanto que perdi um certo esmero nesta metamorfose lenta que eu sentia estar a ocorrer. A própria Sara, sempre o senti, tinha no olhar um - como hei-de dizer...- satanismo profundo que me prefigurava novos mundos, desafios, despiques. Eu sabia que caminhava para a frente, mas não em fuga, até porque era com muito mais velocidade. Sentia-me uma espécie de rastilho em fogo que me abismava, como se uma Deusa em plena ira me possuísse e me atiçasse a cumprir um destino impossível, corrosivo, incontestável.
No dia seguinte, apareceu um miraculoso comprador para os boxeurs. Caim vendeu-os e, com isso, pagou o hotel, os bilhetes de ida e volta a Barcelona e ainda um broche polvilhado de ouro que ofereceu à sua destemida e desejada Sara.