sábado, 15 de outubro de 2005

O Trevo de Abel - Episódio 1 Primeira Parte: O tempo de Adão

O Trevo de Abel - Episódio 1
Primeira Parte: O tempo de Adão
Folhetim do Miniscente
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Naquela noite, o céu surgiu avermelhado. De um lado ao outro do horizonte, uma imensa aurora boreal despontou sobre as águas do rio, sobre as praças, os cais, as avenidas e os miradouros. Era uma nuvem de fogo que se reflectia na calçada, coando telhados e diluindo-se nas finas poeiras do Verão. Naquela noite ímpar, de lés a lés, uma estranha vermelhidão cobriu, de facto, toda a cidade de Lisboa. O espanto era total, confesse-se. Desde os tempos da guerra civil de Espanha que tal coisa não se via e, na época, muitos haviam sido os relatos, as inferências e as apressadas conclusões. Junto à fronteira, houve quem dissesse que aquilo era reflexo do sangue vertido nos fuzilamentos da praça de touros de Badajoz. Junto à foz do Tejo, houve quem dissesse que aquilo eram insólitas nuvens de insectos com porvir e fadário ainda insondáveis. Houve quem dissesse e quem calasse. Hoje, porém, era o pasmo e o prodígio que padeciam sob o olhar atónito dos lisboetas. Um autêntico assombramento!
Diante deste espectáculo que o destino confiara, não a videntes, mas aos mais comuns dos mortais, nas Escadinhas da Praia, precisamente onde a 24 de Julho parece esquecer-se do arvoredo do Largo de Santos, uma mulher chegou à janela e gritou, gritou, gritou muito alto. A mãe de Marieva, de nome Maria Alba, depois de largar o desalmado grito, retirou com ambas as mãos, de dentro do decote, os seus dois desmedidos e espantosos seios que pousou sobre o parapeito da janela. Ainda que esvaída pelo nervoso, pelo deslumbre e sobretudo pela maresia inquieta do Tejo, Alba voltou a gritar na direcção do guarda-nocturno que tão bem conhecia e clamou uma vez mais: - Nasceu!
Vendo tais doces vultos sobre o vão da janela, iluminados, para mais, pela vermelhidão quase sanguínea que se espalhava no ar, o guarda fez sobressair a maçã-de-adão por duas vezes, agitou as chaves na ponta dos dedos e acabou por perguntar, voltando-se para a janela do primeiro andar: - É menino ou menina? Alba franziu compassadamente o rosto, mexeu os lábios com lentidão e, depois de anunciar que era menino e macho, logo traduziu a sua alegria através de uma confissão simples e óbvia - Sempre jurei que haveria de virar as mamas para o sol, quando o neto me nascesse! Contudo, nunca Alba pensou que o mesmo sol, talvez por inaudito presságio, haveria, um dia, de alumiar o próprio coração escancarado da noite. Era o que hoje se passava; era esse o quase milagre ou prodígio que se convertia agora em comoção original.

Marieva já quase há três dias que sentia as contracções a espaçarem-se cada vez menos. A dor ia-se espargindo, à medida que o ritmo se misturava com o avermelhado que entretanto inundara o tecto do quarto. O calor do Verão, aliás, tinha acompanhado o longo ritual até que, naquela madrugada, um imenso caudal de águas inundou pernas, lençóis e soalho. Passados uns minutos, entre cheiros agridoces e terriços de ferrugem, o menino submergiu, enfim, com muita rapidez, disputando o primeiro sopro vital com que se debateu, a sós, entre as quatro paredes transfiguradas pela cor da luz e pelo alívio de Marieva. Depois, alguém puxou o cordão umbilical e toda a ditosa matéria da primeira vida que Alba, talvez lasciva e ancestral, vá-se lá saber porquê, sempre havia comparado a favos de mel ou a adubos de Deus.
Quando Marieva levantou os olhos para a janela, reparou que a sua mãe se encostava ao parapeito, quase nua, anunciando o menino que nascera ao guarda-nocturno. Sorriu, olhou para o bebé deitado sobre si e de imediato descobriu, pela primeira vez, o que era o espanto; o que era a surpresa de ver o que já conhecia; o que era a estranha alegria de se sentir tão pouco importante, diante daquele milagre de olhos abertos e de respiração livre e tranquila. Marieva chorou por exaustão e amor, nesse momento em que tudo se amalgamava e confundia. Pouco depois, a avó Alba voltou-se para dentro, recolheu as desmesuradas mamas, levantou os braços que eram de ovarina e disse de bom grado, como se fosse inesperado dizê-lo - Estou de acordo, filha! Vamos chamar-lhe apenas José Adão Ulisses e nada de lhe pormos o nome do desgraçado do pai. Marieva, cansada e lívida de rosto, voltou a sorrir. Talvez. Confesse-se também que, nos estuques do quarto, a luz avermelhada da aurora boreal não havia sido, até àquela altura, tão intensa. Parecia até que um relâmpago, cor de tijolo rosa, desenhara o céu de ponta a ponta, como se fosse um impiedoso risco. Ou um deslumbrante rasgo. Por momentos aconteceu; dir-se-ia que a terra assombrara a raiz mais antiga do próprio céu.

Enquanto anda pela rua, Abel ainda relembra, por secretos auspícios da memória, a cor avermelhada desse distante céu nocturno. Tudo o resto lhe é vago, indefinível, sem precisão alguma. Agitado e já esquecido da rápida e estranha reminiscência, Abel quedou-se subitamente imóvel, no preciso momento em que acabava de descer a Rua do Alecrim. Aí se prostrou, olhando em frente, heróico, como se quisesse encarar a silhueta de bronze do Duque da Terceira e, para além do suave empedrado da praça, o próprio rio, as suas margens, a incerta névoa fluvial. Abel sentiu então o que o poeta quereria dizer, ao observar, dali, toda esta urbe esfumada num autêntico desejo absurdo de sofrer. Confrontando-se com tais sombras e bulícios interiores, Abel andou rapidamente ao longo do quiosque dos jornais, contornou a bicha do multibanco e, depois da agência de viagens, esperou finalmente pelo verde do semáforo. A espera é a véspera da própria vida; Abel pensou-o, abriu as narinas e sentiu um suave odor a limão. Música de cordas ou lembrança de outro tempo. De qual?
Por dentro, como se estremecesse de modo violento, Abel parecia transbordar, rebentar. Era agora ou nunca, tinha que contar tudo a alguém. Fosse a quem fosse. Era impossível continuar a guardar esta história exorbitante e sem nexo que era afinal a sua. Mas como fazê-lo?

Com quem é que poderei falar, com quem? Pensou Abel.

Quando se viu no meio das floristas, à porta da estação do Cais do Sodré, já nem o pregão conseguiu bem distinguir, entre tantos alvoroços e súbitas vertigens. Como um verdadeiro acossado, Abel atravessou a correr o desregrado estacionamento e acabou por sentar-se na última das esplanadas ribeirinhas onde o destino, sempre ínvio, ainda permite aos mortais que se visione o que resta da nostálgica Doca de Abrigo.

Daqui partiam os velhos vapores lisbonenses e, na pequena doca, evitando talvez o Cais do Aterro, recolhiam-se as embarcações de pesca de mastro altíssimo, ateadas por cordas, correntes e recordações inauditas. Hoje, de tudo isso sobeja apenas um exíguo par de namorados que continua a abraçar-se sobre o empedrado do pontão, dissuadindo a neblina que envolve, ao longe, a Lisnave, os braços dos guindastes, o arcaboiço metálico e escuro das ancestrais naves de sonho. De tanta memória adiada, apenas sobeja, nesta vista, a percussão de um firmamento luminoso a fundear a sós neste grande rio da saudade. Basta vê-los, abraçados e devolvidos, desde já, à distância que é feita de água, de água. E de tudo o resto que, no princípio, nada mais foi senão água.

Abel bebe a imperial, levanta a cabeça e, de novo, se dedica a olhar em frente como se, ao cabo de tanto cismar, tivesse por fim decidido. Ao lado, sobre os dois contentores de lixo, as gaivotas esticam as pernas que são hastes leves, acrobatas da tal distância feita de águas e vida. Vão e vêm, falam com rumores iniciais, penetrantes e agudos, flutuando ao vento com asas muito abertas, distendidas. Elas sabem que Lisboa é um berço recurvado sobre o mar interior que o rio resguarda e que o oceano aguarda como pura tentação. Em frente desta evidência clara, para os lados do nascente, e depois de pousar na mesa a segunda imperial, Abel viu um cacilheiro todo branco atingir o seu curto fado. Trazia, na varanda, uma sucessão de pneus pintados de cor-de-laranja que mais pareciam globos armilares do império de há muito. Nesse momento, intempestivo, Abel deixou cair uma das mãos sobre a mesa, como se houvesse ditado, de si para si, um veredicto final e decisivo.
Foi então que se levantou, olhou em volta, correu ao longo da esplanada e foi sentar-se à mesa do homem. Quem é, ou não, este homem ninguém o sabe, nem mesmo Abel. É, pois, normal que o dito homem tivesse estranhado o sucedido, no meio desta tarde calma, espessa de névoas, entretido que estava com o seu silêncio e com a textura negra da sua Guiness.

Nesse ápice de estranheza, no abismo da confissão quase impossível, Abel abriu muito os olhos e disse para o homem: - Não posso continuar calado. Ainda que não o conheça, tenho que lhe contar tudo. Sabe... a minha história é quase inexplicável, nem me vai acreditar, mas desculpe-me, eu nem me apresentei, chamo-me Abel. O homem, porventura já menos sisudo e pasmado, depois de um primeiro olhar intricado e surpreendido, acabou por se intrigar com a singular expressão de Abel e pediu que falasse, que se acalmasse, se queria também uma Guiness. A conversa iniciou-se nesse instante impenetrável e imprevisível, nesse exacto segundo. Estranho, o tempo da confissão inesperada.

Fosse como fosse, Abel sentenciou a primeira frase. A tal frase.

O cacilheiro voltou a partir para a margem sul, outrora a Índia. As gaivotas ter-lhe-ão seguido o rasto, mas por pouco tempo. E sob a grande nuvem violácea e lilás, a poente, a extraordinária ponte continua, metalicamente suspensa, de braços dados à amplitude do ar. Dessa vista que é resíduo de deuses do mar, sobressai, neste momento de sigilos, um sol quase encoberto a luzir no espectro do Cristo-Rei de Almada. Atrás do cacilheiro, já distante, uma breve corrente abre-se, com vagar, no gorgolejar do Tejo, enquanto Abel, de gestos incisivos no ar, não pára de desabafar diante do rosto boquiaberto e incrédulo do homem. É assim a vida na foz do grande rio da Ibéria; é assim a secreta providência na cidade dos poetas por cantar; é assim a aventura nesta cidade em que o Mediterrâneo a desbravar foi e é um Oceano do mundo. Um oceano sem fundo. E Abel, a tentar exprimir-se o melhor possível, a gesticular, a dizer que, de início, a vida até lhe tinha sido bafejada pela sorte.
Diga-se que o azar, tal como a sorte, é sempre o azar dos heróis.