domingo, 23 de outubro de 2005

Folhetim

O Trevo de Abel – Episódio 10
Primeira Parte – O tempo de Adão
Folhetim do Miniscente
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E os treze atravessaram a Praça de S. Paulo, em diagonal. No meio, surge o chafariz com as quatro bicas do paraíso, capazes de, por si só, suportar o breve obelisco que alguém coroou com um globo armilar. E o taxista, encostado à esquina a falar para as amazonas da noite, a dizer-lhes que o gajo andava a monte e a fingir que também era taxista como ele; que isto está tudo virado ao avesso, que já não há ordem, que o governo não tem mão nos bandidos, que é coisa de droga, que é coisa do outro mundo. Anda o diabo à solta.

Naquele tempo, insistia Abel, as putas eram preciosas sereias de Vénus que, hoje em dia, a heroína e outros óleos mortais desfizeram em farrapos humanos. Naquele tempo. E uma das amazonas de Lisboa, desdentada e purificada por anéis de banho de ouro, lá ia dizendo que, em tempos idos, tinha trabalhado para o Caim, para a Espanhola, para os Coimbras... e que podia afiançar que era tudo boa gente, que não eram bandidos, não senhora, que não eram diabos nenhuns, não senhora. Por que andaria agora meia cidade atrás dele? Porquê?

E dizia ainda a Amazona que um clochard a quem chamavam profeta Isaías (o tal que percorria o Mercado da Ribeira com a sua minúscula liteira de cães) insinuava, delatava, espalhava o terror com palavras venenosas. Dizia Isaías a quem o ouvisse que Abel há muito que tinha sido denunciado pelas muitas pragas que ele próprio difundira em toda a zona dos Remolares e de Porto Brandão; dizia Isaías que Abel havia sido visto em diferentes sítios e vidas, o que era diabólico e herege, tal como agora testemunhavam egípcios e etíopes na CNN. E a Amazona apontava de longe e ria. A boca desdentada, as varizes de plátano, o decote desleitado. Tem cuidado, tem cuidado, dizia.

E o grupo entrou no amplo Mercado. Tal como nos tempos em que este espaço ainda não dispunha de tectos gigantes e renovados, os gritos das floristas pareciam ecoar, destemido, o velho pregão dos mil perfumes, faros e olores:

São cravos, papoilas de Outono, roseiras de chá; albardeiras, papalvos de túnis, camélias; hortênsias, malvas dos jardins, calendárias; sabugueiros de água, amores-perfeitos, alamandras cheirosas; roseiras de ouriça, flores de defunto, laranjas da terra; hortelãs silvestres, pimpinelas menores, hidranjas; camarinhas, jardas, rosmanos; gomís, jarros, ervas da ribeira; hortelãs, jararacas, jasmineiros; begónias, cristas de galo, malmequeres e bem-me-queres; juncos, flores de freixo, penélopes; calêndulas, três-marias, buganvílias; ervas mouras, sempre vivas, rosas puras.

Era um murmurinho de atoarda, um rumor de zumbidos, cristas vermelhas e cor de fogo que se tinham arriscado às ondas, um dia, para criar Lisboa. Eram trevos-vermelhos por todo o lado, rumores e presságios sem fim. E Júlia, às vezes, com algum medo de se aproximar de Abel, ou fosse ele quem fosse.

E Abel, longe desses abismos, agora repentinamente entusiasmado e a lembrar-se dos tempos em que comprara um palácio com trinta e duas divisões perto do Guincho, a lembrar-se dos tempos em que comprara a famosa mansão azul da Marquês de Tomar. Nessa altura, Abel tinha carros de todos os tipos, circulava pelos mupis, cartazes, revistas; pelos sítios da web, pelos autocolantes e sonhos de todos. Abel tinha a felicidade das oito da noite à uma da manhã; circulava de palco em palco, levantava a voz, os braços, o verbo imaculado e sucinto. Abel era um espectáculo sobre-humano, capaz de se reduzir às opiniões banais ou celestiais de cientistas, literatos ou comentadores da coisa pública, como era também capaz de libertar o mistério, de transformar bailarinas em fogo, música em desvario e delírio. Abel tinha, de facto, reconstruído um sentido para a vida de todos. Abel era a prova limite de que real e ficção, ficção e real, são dois lados da mesma folha de bambu, do mesmo firmamento da existência. Do mesmo nada.
Por todo o lado, os cidadãos recebiam a vida pelos mil ecrãs que deambulavam nos portáteis, nas televisões, nos carros; nos livros, nos porta-moedas electrónicos, nos telefones celulares e nos painéis urbanos de grande dimensão. Abel tornara-se no rosto da vida, na árvore da sabedoria, no herói inenarrável da nova Ítaca, onde a ilusão fugaz se impusera à rotina e se metamorfoseava no palco vivo da alegria, da conformidade, enfim, de uma nova e ainda inesperada razão do espírito. Abel era o futuro augurado, reminiscente, naquele tempo em que, sob o impetuoso coro de holofotes, todos os dias entrava em cena como se se revelasse através de um deslumbrante cometa azul e vermelho, oriundo de galáxias em expansão perpétua. Abel tornara-se no corpo da verdade e da ordem. Abel era o herói. Abel era o centro de todas atenções.

Abel era um homem feliz das oito à uma da manhã, mas depois, depois, limitava-se a entrever, contemplativo e lacónico, as muitas pinturas e esculturas do seu palácio solitário. Depois, depois, quase morria, esmorecia, calava para sempre o que, de facto, era.
Depois, depois, só ele sabia o vazio, o tremor, a tremenda ausência em que, de repente, após a operação, se reviu, noite após noite.

E, à volta, o mercado e todos a ouvirem a mensagem subitamente incrédula. As insónias, os desencantos, a descrença e a brusca impiedade noctívaga. Que se passaria?

Lisboa é, de facto, um berço recurvado sobre o mar interior que o rio resguarda e que o oceano aguarda como pura tentação - voltou Zorba a pensar no mais puro sigilo.
E pensava-o, enquanto observava o seu Abel a falar de frívolas fraquezas, de solidão, de desencantamento súbito, com tanta flor por todo o lado.