domingo, 30 de outubro de 2005

Folhetim

O Trevo de Abel – Episódio 16
Segunda Parte – O tempo de Adão
Folhetim do Miniscente
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Percorro os corredores do hotel, depois de abandonar a sala de jantar. Sobre a alcatifa sombria surge um gato gordo, elegante e de ar selvagem. Sigo-o, por trás da sua imponência infantil e, à medida que arrola as orelhas na minha direcção, percebo que inevitavelmente me conduz a algum lado. Com ou sem intenção, o certo é que, ao virar para o hall, dou de caras com uma espécie de mordomo de traços orientais. Redescubro em mim uma desmedida coragem e é ali mesmo, sem mais, enquanto o felino ainda continua a sua marcha, impassível, que lhe pergunto pela clínica. O mordomo reconheceu-me e parecia esperar-me há séculos. De modo tácito, prático e confidente, explicou-me os detalhes logísticos que eu procurava. Deu-me mesmo a escolher entre várias hipóteses, conforme o meu desejo e opção. Paguei-lhe bem, é verdade. Passados minutos, saído do hotel, vejo-me a deambular pelas Ramblas, perto do desenho que Miró mandou estampar no empedrado da Plaça Boqueria. Deixo o Liceu para trás e sigo para norte pela Rambla das Flores e pela Rambla dos Pássaros onde o desmedido vozear parece substitui os antigos halos da universidade setecentista. Barcelona tem, entre estas surpresas e uma memória antiga e áurea, a alegria e o sortilégio em suspenso do Mediterrâneo; uma qualquer genialidade a pairar no ar; uma leveza, enfim, que não é funesta, nem perturbante.
Há paz nesta cidade, ou melhor, o exacto alívio de quem saiu da morte para a vida sem o poder explicar e sobretudo sem ter que o fazer. Nas estátuas de Gargallo reflecte-se esse recomeço, esse brilho ou devir inicial. Adão, ou talvez já não seja Adão, mas seja como for... o nosso personagem (que, jura o narrador, é exactamente o mesmo) olha encantado para as formas de alazão, trazidas ao ser nas paredes claras do Palácio da Virreina, e conclui que assim é. Uma nova vida aqui começa. Tudo lho diz: os brilhos das fachadas, os acrobatas da dança, os chilenos que cantam condores ao alto; o fogo assoprado por homens-ginetes, as coristas de capa cor de âmbar, as aves florais de Santa Maria de Pi; os sapatos longilíneos das grandes montras, o ocre quase rosa das varandas e, por fim, até a multidão silenciosa e trémula que agora se esboça na Avenida do Portal de l´Angel. Tudo lho diz, de facto. Adão compra uma mala de couro, um casaco comprido e novas camisas; troca os óculos escuros por uns novos, sem aros e de hastes com leve luminescência violeta. De táxi, segue sorridente pelas áleas do Passeig de Gràcia, ao longo das casas talhadas pela imaginação orgânica de Gaudí, até que, por momentos, deixa cair a cabeça e dormita. Exausto, talvez pela glória do novo alvor da vida, talvez por não conseguir fechar o arco deixado em aberto pelo inexplicável. A luz recorta agora a vidraça fugidia dos sucessivos cafés e, pela frente, os candeeiros públicos fundem-se com a forma retorcida da suave pedra catalã. Pedra diáfana onde fundeiam, rápidos, os pneus do táxi amarelado e negro, a bordo do qual o ainda Adão dorme, dorme, dorme, antes de a curta viagem se consumar algures em Pedralbes:

E o barulho do carro subitamente em foguetão se tornou. Para que céu iria eu? Ninguém respondeu do outro lado. Mas que lado seria esse que se esconde e escondia por trás da luz que as pedras esbranquiçadas do prédio então reflectiram? Que viagem translúcida no comboio da estratosfera era essa que me fez aterrar, de repente, no rio arenoso e espesso cheio de piratas e mirones? Que artista era eu diante do ecrã de televisão, curvo e efémero, tal como os ciprestes inclinados do Cemitério dos Prazeres ao vento? Que Ramblas são estas que escalam entre o porto de abrigo e a vida a renascer no olho vendado e taurino de Pedro Domeque? Que sonho liso derrama a memória dos que me perseguiram com candeias de luz e cera? Que muro é este por onde escorre uma água acastanhada, cheia de fel e aroma de nardo, perto do qual voltei a nascer após a morte do grão-duque, ou do gato felpudo do Hotel Oriente? Que dia é este que sucede a perpétua noite onde já não há tempo, mas apenas brilho e terra mole feita de calor e nada? Todas estas perguntas... fazia-as um ratinho branco, de papillon de seda e cetim, ao nosso Adão que nem já o próprio nome sabia. E, coitado, o ainda Adão, ao espelho, parecia jazer obsessivamente diante do seu rosto sem imagem, sem cor, sem mesmo dispor do tal calor a saber a nada e a ele próprio. E porquê? Ninguém respondia ao ratinho, ou àquele simulacro de gente, agora deitado diante das delícias dos limbos incertos que existem, por vezes, debaixo das marés vivas de Marte. Onde estaria a vida, de facto? Em Banguecoque? De que seria feita? Pensava aquele homem sem face que, no entanto, sentia a força do calor e do frio, mas não o seu excesso; pensava aquele ratinho diante de uma ventoinha de brisa celeste que lhe afastava as golas da casaca de cetim, seda e penugem de anjo. Sim, de que seria feita a vida de que fora apeado Adão - essa mesma vida que o mantinha vivo numa cidade de nome Barcelona? Que casas são estas, retorcidas e dobradas como corpos de moluscos e barbatanas anfíbias, que se espalham pelo desvairado céu que sucedeu à outra vida? Que dia é este, senhores etíopes, em que perdi a voz e o néctar ou o fulgor de sentir, enquanto falava... ao chegar de novo à vida? Cantarei ainda?

E foi nessa altura, quando a voz do sonho parecia abruptamente frouxa e frágil, que Adão quase de imprevisto acordou. O taxista virara-se para trás e tinha-o de facto acordado, mas, ao mesmo tempo, sorria, eufórico, apontando com gáudio e orgulho para longe - Olhe, é nesta direcção que fica a Sagrada Família! Tem que lá ir! É português, não é? - Foi como se acordasse mais uma vez, diante da insistente voz do taxista, e, sem qualquer apelo, foi mesmo como se tivesse reencarnado a vida, o sentido, a magia incompleta de voltar a ser. Até porque há coisas que não se digerem de um momento para o outro, num breve ápice. Terei dormido? Perguntou para si em silêncio, face ao taxista que continuava virado para trás, a dois terços, com a grossa palma da mão virada para o ar. Adão escancara a íris, distende as pupilas e afasta da cara os novos óculos. Com renovada respiração, olha então por cima dos quarteirões geométricos que se estendem na direcção da imensa València. Encara agora o taxista, volta a sorrir como dantes e revê-se no vidro, de perfil, no interior abafado do vidro da janela do mercedes. Afinal sempre estou vivo, mas serei eu ainda o Adão? Que horas serão? Por que não chego eu nunca mais à clínica? - Pensou. Até que finalmente, após um lento e contracenado sorriso, respondeu que sim, que haveria de visitar a Sagrada Família. Por que não? A vida também é um perpétuo reacordar.
A força das pálpebras sobre os olhos parece massiva, desmesurada. Ao longe, - a voz balbuciante do taxista, as alucinogénicas ondas de La Pedrera, o zigurate salmão da Casa Amatler; o arame enrolado do topo da Fundação Tàpies, os vasos das águas furtadas da Casa Comalat, para além do secreto pouso de aves brancas com olhos esguios e parados, imóveis, ancoradas com garras muito fixas nos amplos torreões da Mansão dos Punxes. Barcelona tem, de facto, a serenidade e a lisura das avenidas que nunca conheceram, em vida, colinas e precipícios abruptos que se abatessem sobre rios, mares e marés. Em Barcelona, respira-se e volta a viver-se com o empenho criador da épica mediterrânica, repetiu-o a voz fina e misteriosa que parece segredar no ouvido deste futuro marinheiro que já se chamou Adão. Mas, por outro lado, em Barcelona, as pedras edificaram-se ao sabor do vento, foram moldadas por mãos oblongas, elípticas e circulares. O sonho aterrou aqui, imune, na vida plana e fecundada para os heróis sem rosto. Quem serei eu? Pergunta o nosso homem, agora à procura de nome e da famosa clínica de Pedralbes. O taxista entrou na maior das avenidas, a Diagonal. São quilómetros de vida, após o resto. É esperança, ao longo de copas e copas de árvores muito vivas e sempre verdes, com frutos de prata e ínvias florestas de palma e mirra. Barcelona é talvez apenas uma dança para suprir a dor dos que se autoflageram no limbo da paixão negra da vida.
Os semáforos seguem-se. A via é recta, longa, prolongada. Depois da avenida virá o futuro, pensei. Faltará pouco. Ouço dizer que o Barça vai ser outra vez campeão. Os quarteirões têm uma forma esférica particular - ou globular - de descrever um ângulo recto. Há carrinhos de bebé, cães guiados por trelas de trinta metros e mais. Nuvens altas e janelas abertas nos últimos andares destas casas compactas, bastas de imaginação e calor. Nunca imaginei tanto torpor e desejo misturados numa só cidade. Barcelona tinha que ser o lugar do destino prescrito para tal demanda e tarefa. Deixo de ser o que sempre fui para passar a ser, dentro de pouco tempo, o que nunca julguei vir a ser. As praças sucedem-se: Francese Macià, Reina Maria Cristina e finalmente Pio XII. Até que o táxi meteu pela Rua Menendez Pelayo e, finalmente, sob um verdadeiro manto de cimento, foi possível desvendar a cave onde apareciam escritas as letras que nomeavam a clínica anunciada. O tempo chegara. Saí, agradeci e paguei. Garanto que hei-de visitar a Sagrada Família, repeti. O taxista agradeceu, enterrou o boné pelos caracóis abundantes e foi à vida. Para sempre. Apertei a minha mala contra o peito, subi as escadas e bati à campainha, após algum compasso de espera. É tempo de decisões, de riscos, de identidades forjadas ou reais. Qual é, afinal, a diferença? Nem Deus provavelmente o saberá.
Talvez o orvalho da madrugada de amanhã o reconheça.