O grande enigma de Mário Soares
1A “esquerda”, tal como é sistematicamente referida pelos média, pelos comentadores e por alguns políticos das franjas do sistema, não é de facto uma categoria real. Perguntar-se-á, por exemplo: o que é que, hoje em dia, tem a ver o sector “moderado” do PS (no mínimo, perto de trinta por cento da população portuguesa) com a visão do mundo e a história do PC e, por outro lado, com a “alter-globalização” do BE? Eu diria: nada, rigorosamente nada. Ao invés, a ideia de liberdade é bem mais comum a esse largo sector que vota PS e à vasta área dita à sua direita. Soares sabe-o perfeitamente, mas, apesar disso, irá adaptar o seu discurso frentista (e por vezes radical) à natureza “esquerda-direita”, hoje cada vez mais dissociada da realidade e da lógica do mundo omnipolitano em que vivemos.
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A realidade e até a estabilidade da categoria designada por esquerda (“clássica”) é, pois, cada vez mais, um embuste fantasmático a que muitos querem colar a expressão do PS (os tempos “pós-11 de Setembro” nada têm a ver com a lógica de oposição ao regime deposto em 1974; associar ambas as esferas é quase o mesmo que tentar entender o 25 e Novembro de 1975 à luz das guerras liberais). Manuel Alegre demonstrou, nas primárias socialistas de 2004, ser o paladino épico deste embuste e, segundo parece, quer continuar a sê-lo e a protagonizá-lo. A direcção do PS sempre soube, no entanto, que uma candidatura de Manuel Alegre seria suicidária para a continuidade governativa e, para além disso, estaria muito longe de preencher o vazio instalado. Por isso Soares avançou. Não sabemos a que preço, embora o “politicamente correcto” socialista tenha tentado, desde já e a toda a prova, suavizar alguma tempestade.
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Soares abandona assim subitamente o labor e as expectativas da sua Fundação e apresta-se a refazer o que, há vinte anos, noutra dimensão, levou a cabo com destreza, com determinação e sobretudo com os pés bem assentes na terra. Já se sabe qual é a lição de Pavese: não voltes nunca “ao lugar onde uma vez foste feliz”. A lição podia e devia aplicar-se agora a Mário Soares, até porque não é difícil entender que terá pela frente, numa possível campanha eleitoral, o fogo cerrado do “passadismo”, embora o argumento das “idades” seja francamente idiota e próprio de uma época em que a única utopia viva, além da tecnológica, é a que aponta para a liofilizada juventude eterna. Simulações puras, é verdade, mas a que Soares não se poderá jamais eximir em tempos mediáticos.
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Para além destes desfasamentos circunstanciais e inevitáveis, Mário Soares irá também sentir dificuldades óbvias em distanciar-se das posições assumidas nos últimos anos, muitas vezes bastante próximas da autofagia contracultural em voga nos grupos “alter-globalização”. A confusão entre os terrorismos dos anos setenta e os actuais hiperterrorismos é tão grave como pressupor a simples ideia de negociar com uma organização obscura que funciona globalmente em rede e não no modo clássico, orgânico e vertical. A desmedida convicção “anti-Blair” e algum “anti-americanismo” - que, na visão da Europa, está muito para além do ímpeto anti-Bush - encostaram Soares a sectores que quase rareiam, nos tempos que correm, na “grande nação PS” (o tom do seu programa mensal na SIC-Notícias fala por si). Esta deriva radical de Soares corresponde a uma verdade indesmentível e, com toda a certeza, será objecto de grande impacto na campanha eleitoral.
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Por fim, a subliminar realeza. Os argumentos de difícil rejuvenescimento da República são conhecidos. E os estigmas em confronto na campanha eleitoral que se avizinha apenas os confirmam, por mais que os defensores “par cause”, incapazes de qualquer relativação, continuem a pensar o país e o seu exclusivo candidato como um devir heróico onde o ouro penderá para sempre sobre o azul. Há cerca de doze anos, comparei numa crónica o “Bucha e o Estica” com a recepção popular a Jorge Coelho e a Cavaco Silva. Duas vozes que afinavam o diapasão pelo vulgo, uma através da mimese e do espanto, outra através da representação quase temporal da ideia de “professor”. A essas duas vozes pode acrescentar-se outra bem mais intemporal nestas últimas três décadas: a de Mário Soares. De certo modo, a era pós-1974 quase se confunde com o destino de Soares: na mitologia da fundação democrática, na difícil “viragem FMI”, na consumação da “ideia Europa”, na alternância institucional ao Cavaquismo e, nos últimos anos, na afirmação de uma indignação em nítida “fuga para a frente” (esta última fase é, de facto, a mais errante na singular caminhada de Soares). A ideia de realeza assenta não apenas no percurso, mas também na simbólica de concertação e colegialidade que Soares sempre evidenciou. A grande questão, neste momento, é a seguinte: será que o povo português ainda deseja confundir a sua imagem com aquela que a sua candidatura irá tentar, indeclinavelmente, colar à nova realidade?
É esse o enigma.