sexta-feira, 4 de março de 2005

UM AMOR CATALÃO
Folhetim à moda clássica
SÉTIMO EPISÓDIO
(Entre a memória pesada e a visão iminente)

A jarra é de cristal, alta e envidraçada, mais parece uma labareda suave a desafiar a vasta montra que dá para a piscina.
Edmundo avança, às nove em ponto, com passos largos, decididos, as mãos caídas nos bolsos das calças brancas, alvíssimas, e a memória perturbada com as encomendas das tipografias, com a avaria do carro, com a história da tourada, com a pródiga presença de nuvens neste dia canicular de Agosto.
Edmundo dispara os olhos fixamente na direcção do aquário e, depois, com agilidade, contorna a mesa cheia de talheres, pratos, sumos de cores fortes, gelo e uma verga recheada com pães do levante. Um sorriso para o empregado mais próximo imprime o eclipse raro de mais uma manhã que parece, diga-se a verdade, condenada ao mais puro anonimato das férias.

Passa um minuto das nove da manhã e Edmundo já está sentado à mesa, o guardanapo a cobrir o hábito de linho que veio um dia da Louisiana, o som dos miúdos no relvado a invadir o mundo como se fossem cometas e asteróides pouco preciosos; a paz do pequeno almoço a vaguear através de silhuetas informes que entram e fogem da sala, num serpentear de súbita excitação.
Edmundo parece mais estóico, volátil, como que desaparecido no meio do tufão, evadido no seio da turbulência deste hotel de Verão.

O suor faz das suas, é verdade, mas Edmundo já saiu, entretanto, para o relvado com os óculos escuros e um lenço obsessivamente branco a deslizar ao longo da testa. Decorre o ócio incerto da manhã e a cadeira de lona acaba por vir juntar-se ao policial, embora o ensejo, como se imagina, seja breve e sobretudo transitório como a vida.
Letra após letra, cena após cena, crime após crime, e Edmundo sempre a lembrar-se do preço do papel, do telegrama de Lisboa, da tourada e ainda, quem havia de dizer, da última nuvem que parece agora a esvair-se na direcção de Girona.


(No próximo episódio, Edmundo surpreenderá Albe a nadar nas águas da piscina, qual sereia deleitada pela intemporalidade das férias. Albe mantém aquele silêncio próprio das ruas do Bairro Gótico, quando se esvaziam e o mundo as entreabre de doçura espantada. E, subitamente, tudo parece ser possível)

Continua
*
(publicação simultânea da versão matricial em Inglês no blogue Minion)