Mais do que o terror de existir
Ouvi o final do debate Louçã - Portas, na véspera de um dia ocupadíssimo. Esqueci. Coisa pobre. Mas ficou-me no ouvido o momento nevrálgico: Louçã acusava Portas de nunca ter gerado uma vida. Ele, sim, podia ver o sorriso da sua filha, mas Portas não. Incrível. Toda a gente conhece os mil subtextos que habitam nesta insinuação. Num país de tabus como o nosso, esses subtextos são sempre dissimulados com outras discussões mais elevadas (já se sabe que a homossexualidade e a heterossexualidade são parte inviolável de um fantasma sempre elidido, não dito, não falado, não assumido e perpetuamente remetido para a esfera do privado, do invisível ou do proibitivo). Sobra o resto: uma rotunda simetria de indignações: de um lado, Louçã esquece que Portas é uma pessoa e até um adversário político, transformando-o num espectro canibalmente diabólico (Mossulini também insistia na obrigação de os machos procriarem contra tudo e contra todos); e Portas, por seu lado, esquece deliberadamente que “o direito à vida” não é uma pretensão exclusiva, não é um dote de noivado ideológico, nem é uma alegação paroquial de uns tantos iluminados e possidentes da unicidade ética e moral.
Tal simetria atira por terra a dignidade e a frontalidade políticas na nossa terra. Metade do que se insinua é sempre matéria de ocultação, metade do que se diz é muitas vezes torpe, medíocre, reles, nojento, sujo (os adjectivos começam, também eles, a resvalar na direcção de uma escatologia do paradoxal e do terror). Possivelmente, não há ainda maturidade plena para o debate político em Portugal. Digo-o sem mágoa e digo-o sobretudo com provas que entram pelos nossos olhos dentro.
Debater por ter apenas que debater (caso do face a face Portas - Louçã) conduz a isto mesmo: à consciência de que José Gil se fez inocente arauto, isto é, de que Portugal é um país que vive amiúde com um inadiável terror de existir. Medo de ser. Medo de dizer. Medo de discutir. Abertura forçada. Medo um do outro. De nada. Bardamerda.