Redenção portuguesa
E hoje... chegou o mau tempo
Na rentrée política, vários foram os temas e anátemas que percorreram a nossa dispersa atenção. Falou-se de tudo: professores, raptos, feiras, calor, para além das inimagináveis tramas terroristas. Mas sobressaiu a isso tudo, na nossa pequena terra paroquial, esse estigma quase divinal que dá pelo nome de teleponto. Lembro-me de me apavorar face a esse travelling letrado a estibordo que me acompanhou em algumas gravações televisivas.
Seja como for, não é o teleponto que me apavora, já que ele é um mero substituto do papel escrito que os políticos dos sixties liam escorridos em suor, expostos que estavam às luzes intensas dos estúdios. O que me perturba profundamente é a vontade de que tudo tenha que sair perfeito, harmonioso, integral, absoluto e sem quaisquer falhas. A vida não é assim; a vida não é ilesa aos envolvimentos de um certo caos. E a política também não pode ser uma coisa estriada, forçada e dissimuladamente perfectível.
É verdade que rodopiar a realidade, ficcionalizar e simular são coisas normais no globário tecnológico em que vivemos hoje em dia. Mas querer pintar de cor-de-rosa e cobrir com verniz o inapelável é tarefa para o supremo altar do kitsch. E esse é o padrão que Sócrates, feliz ou infelizmente, se prepara para trazer à cena política portuguesa.
Guterres era um católico de crença, tinha um discurso que se modelava às adversidades e projectava, sobretudo nos primeiros anos, um certo querer reformador. Sócrates não é um homem de crença; é antes um simulacro de autoridade e um apontador de causas, mas é-o sob o manto de uma redenção sorridente, açucarada e a extravasar de coerência compulsiva.
De resto, era ele o único homem que o PS tinha para o poder. Um verdadeiro mal menor. Alegre e o filho de Soares seriam sempre estigmas políticos muito fáceis para a direita. E por isso limitaram-se a repetir palavras de ordem e pregões batidos que agradavam ao calvário de outros tempos. Por isso limitaram-se a ser a espuma esbranquiçada de um tempo excessivamente demorado e quase estival que foi o das primeiras primárias portuguesas.
Faça-se, de qualquer maneira, justiça à discussão aberta e plural que o PS desenvolveu nesta rentrée política. Pois, por contraste, já todos sabemos o que vão ser os congressos que se avizinham: no PSD, uma consagração maioritária com vozes de Basto a emprestar dissonância à sinfonia e, no PCP, a via dolorosa de uma Jerusalém celeste já sem salvador, nem profeta, nem missal. Do PP nada sei, embora creia que os casaquinhos azuis e as gravatas coloridas deverão, também, ouvir-se uns aos outros, algures, em data incerta.
É provável que as eleições legislativas consigam esperar por nós até 2006. De resto, o calendário das autárquicas aperta o cerco a outras possibilidades. Mas o bizarro esquema do Ministério da Educação, o expediente Marcelo, assim como a resistência a algumas medidas, com desideratos legítimos aqui e ali, caso das taxas moderadoras, lei do arrendamento e do pagador-utilizador nas auto-estradas, podem inflectir o ciclo mais cedo do que afinal se esperava. E a música dos socráticos pode, por implosão alheia, ter que entrar em palco de modo porventura prematuro.
Não sei se é essa a redenção que o país precisa. Gosto de duvidar. Mas todos sabemos que há mudanças urgentes que Portugal necessita há décadas. Há séculos. E sabemos muito bem quais são. Administração pública, domínio fiscal, educação e saúde. Não sou grande entusiasta dos processos de regionalização, nem particularmente nacionalista à moda republicana. E creio mesmo que todos temos a ganhar cada vez mais com uma progressiva e decisiva integração no magma político, social e económico da Europa.
A nossa afirmação na globalização passa pelo diálogo a esse macro-nível e não pela triste perpetuação da retórica intestina e umbilical que tem dado aos portugueses, geração após geração, uma auto-imagem frágil, cândida e às vezes até liliputiana. Hoje em dia, a soberania não tem fronteiras terrestres; tem sim fronteiras mundializadas onde agem causas e meios capazes de fazer recuar o terrorismo, as terríveis desigualdades económicas e as ameaças à liberdade.
Sem esta compreensão não há teleponto que resista.