segunda-feira, 18 de outubro de 2004

Da liberdade - 1

Diz J. P. Coutinho, defendendo uma posição claramente nominalista: “Não existe liberdade em abstracto”, ou seja, apenas existe “uma liberdade tutelada pela lei, que se aplica, em concreto, a casos individualizados e concretos”. O que quer dizer que ninguém se pode situar acima “das consequências” dos actos que pratica, já que uma “sociedade livre” se define, precisamente, “pelos limites que impõe” à própria liberdade.
Apesar de toda a razoabilidade que atravessa a escrita de J. P. Coutinho, é bom não esquecer que continua a haver muita gente que ainda pensa a liberdade como algo que se anuncia vindo de fora. Oriundo de um alhures sem nome. De Marte, porventura. Esperam que um partido, uma “instituição credível”, uma associação “digna”, um cidadão “exemplar” ou um enviesado manifesto oriundo dos média associe aquilo que se passa, no dia a dia, à liberdade ou à falta dela. Esperam alertas e aleluias. Limitam-se a isso.
É uma posição bastante generalizada, entre nós, que parece pressentir a presença de um “universal” anterior a cada caso concreto, a cada caso individualizado e particular. Por isso, ainda há quem fale descontraidamente acerca de “amplas” liberdades dando-se ao luxo de inventariá-las ou delimitá-las, não vá a divindade esquecer-se de distribuir alguma delas aos mortais: liberdade económica, cultural, social, etc (como se vê, a querela medieval relativa aos universais continua bem viva). Mas, na verdade, uma comunidade com a constituição mais livre do mundo, com a regulação mais ordenada do universo, com a gestão mais ideal do património comum ou com a melhor das civilidades apenas o é, não porque uma ordem superior tenha delegado nos seus habitantes uma abstracção chamada liberdade, mas porque o exercício da liberdade nasce e emana de cada um de nós, embora, como é normal, sempre em tensão com os limites (legais, mas tacitamente fluidos) que a mudivivência de uma sociedade livre confere.
A democracia vive e legitima-se, dia a dia, tendo como referente um esteio fundamental que se centra na defesa das liberdades, dos direitos e das garantias. A igualdade de oportunidades e as regras que salvaguardam o bem comum deverão sempre submeter-se a esse esteio. A liberdade não é, deste modo, um deus, ou um dom natural anterior ao fazer dos homens; a liberdade resulta antes, e em única instância, da iniciativa e do querer-fazer autónomo dos homens que se joga naquela fronteira incerta que separa o “estar já acima” e o “estar ainda abaixo” das consequências dos actos praticados. A lei e o código constituem um registo que pretende situar o nível dessa separação. Mas o exercício dos actos por eles observados nem sempre se conforma com essa linearidade. A tonalidade oscilante torna-se dominante, a ambiguidade vacilante torna-se amiúde soberana.
É por isso que eu preferiria definir uma sociedade livre, não tanto pelos limites em si mesmos, como afirmou J. P. Coutinho, mas antes pela própria (possibilidade de) discussão dos limites que se jogam em cada uso de liberdade. A abertura da sociedade disputa-se nesse intervalo onde o possível e a vontade incessantemente se digladiam. É nessa falha, é nessa linha incerta onde se comprimem pressões e torrentes diferentes, às vezes opostas e desiguais, que o código - ou a lei - acaba por definir, no tempo e nas condições específicas da polis, a sua abertura e o seu fechamento relativos.