segunda-feira, 31 de maio de 2004

Maya Gordon, minha amiga


pintura de Maya Gordon

A meias com o meu amigo e grande fotógrafo, José M. Rodrigues (Ó Zé, lá vai outra vez o... dizer que eu fui um dos produtores do teu Prémio Pessoa), recebi esta semana uma amiga comum dos nossos tempos de Amesterdão, a Maya Gordon. Judia de origem polaca, a Maya, além de pintora, é uma força da natureza e uma imensa cumplicidade de memórias e afectos. Deixo aqui, aqui e aqui alguns registos sobre o seu trabalho e biografia para os mais curiosos.
Foi ontem, no último domingo de Maio, que a Maya acabou por contar (a mim e a um grupo de iluminados, todos reunidos num monte alentejano distante da civilização) uma história que manteve secreta ao longo de anos: a sua fuga da Polónia para Israel em 1957, quando tinha apenas dez anos de idade. Vou agora partilhá-la um pouco.
A história pode aliás ser relatada em poucas palavras. No pós-guerra, não terão sido poucos os judeus que decidiram (voltar a) fixar-se na Polónia. Por crença, por regresso às raízes, por determinação pessoal. O pai da Maya Gordon, um engenheiro de alto nível (chegou a participar em projectos ligados à concepção aeronáutica de ponta), foi um desses homens. Preferiu o destino polaco ao celebrado desígnio utópico da fundação de Israel. Opções pessoais da época.
A partir de meados dos anos cinquenta, quando nada aparentemente o fazia prever, a não ser um certa descontinuidade nas altas taxas de crescimento económico, o partido comunista polaco iniciou uma sistemática e empenhada campanha anti-semita. Nessa onda, muitos judeus veriam os seus empregos ameaçados. Por volta de 1955/7, muitos foram mesmo, directa ou indirectamente, forçados a abandonar a Polónia. A família da Maya Gordon integrou um desses grupos, mais precisamente em 1957, numa viagem de sete dias e sete noites em que nenhum dos passageiros pôde sequer sair do comboio entre Varsóvia e Génova.
A memória de menina leva Maya hoje a insistir na palavra “histeria” para traduzir o desespero daquela viagem e daquele êxodo forçado e silenciado pela história. Em Génova, após vários dias de espera, um barco haveria de levar todas essas famílias para um improvisado campo em Israel. A guerra da independência e o holocausto eram ainda memórias relativamente recentes. O novo país levantava-se a pouco e pouco com coragem.
Até voltar ao nomadismo que a traria à Itália e à Holanda, a Maya Gordon viveu, de 1957 até ao fim dos anos sessenta, num país que se tornou subitamente o seu. Muito do seu trabalho plástico evoca estas rupturas, este caminhar entre lugares e topografias reais e imaginárias. Mas a grande viagem, a que escapou ao sentido de escolha da vida, essa, permaneceu ilesa à memória partilhada. Até hoje.