sábado, 1 de maio de 2004

Agenda europeia: alguns sinais



Hoje o que vai estar na agenda é o alargamento europeu. Nos próximos dias, vamos assistir a um fluxo obsessivo acerca deste tema. Pelo globário fora, incluindo no nosso liliputiano aquário luso, todos os chips se preparam para enunciar (pela imagem, pela voz e pela letra) a mesma realidade. A mesma meta-realidade. Aquilo que, na actualidade, se designa por jornalismo é um ofício que se subsume ao fluxo e que, por isso mesmo, não tem qualquer rosto (fotografia sem fotogenia). Seja como for, antes de me silenciar face à voragem da homogeneidade discursiva, deixo aqui algumas reflexões.



Em primeiro lugar, acho que o colonialismo soviético, o pós-Segunda Grande Guerra Mundial, i.e., a longa ressaca da Guerra-fria e um mar de memórias intransigentes e anti-democráticas chegam hoje ao fim. Pelo menos simbolicamente. Para trás fica a longa herança de uma tragédia. Das maiores do século XX. E fica para trás sem que se tenha desvendado o seu real alcance (poder-se-iam apurar algumas responsabilidades para tal). Pergunto: a Europa de hoje à noite é, ainda que muito parcialmente, aquela que foi sonhada por kant na sua (hoje) removida Konisberg?



Em segundo lugar, o que já se sabe. Os novos países têm quase todos uma média de 80% dos cidadãos com o ensino secundário completo (a nossa média nem atinge os 20%); os novos países têm um PIB por habitante bastante inferior ao nosso (com excepção de Chipre, Estónia, República Checa e Eslovénia que andam lá perto); e todos estes países têm uma mão-de-obra baratíssima ao pé da portuguesa. Junte-se a este factos a recolocação das topografias, dos centros e das periferias do novo continente europeu. A conclusão é só uma: acabou-se a papa doce que reinava desde 1986. Mais: nos próximos decénios, a competitividade fará de nós - ou não - aquele país que nunca chegámos a ser após o culminar do Século de Ouro, após vaga de ouro brasileiro ou após a Regeneração oitocentista. Será que é desta que transformamos um clímax histórico em duração, ou repetiremos, mais uma vez, a nossa linha oscilante e fatalista que une alguns pontos altos e casuísticos às imparáveis e duradouras caídas? (Ah Portugal, tanto do teu fado que ilumina a vaga, a vaga ainda chã que o quebranto fez alta!)



Em terceiro lugar, a oportunidade. Passados os impérios escatológicos e ideológicos, a Europa sorri agora sem vergonha desde o vento do Báltico até ao coração de Malta, desde a fronteira ucraniana até à finisterra que é nossa e é irlandesa. A Europa herda um continente de travessias, uma face defensiva e misantropa, mas também uma face capaz de entender a dimensão global e democrática do Ocidente. A Europa herda a dimensão plural que habita as suas fronteiras internas, sejam elas étnicas, religiosas ou culturais, mas também o seu lado temerário ou ousado. Porque é necessário e essencial entender o mundo após-09/11.
Europa, terra para a redescoberta, terra para a oportunidade. É esse o seu único caminho de futuro: superar-se, aliar-se ao flanco democrático global, cimentar o seu corpo variado, abrir-se e repensar com leveza o peso que a faz ser, ela mesma, Europa. Filão capital da liberdade.