domingo, 15 de fevereiro de 2004

Transbordante

Viriato Soromenho Marques, meu amigo, escreve hoje uma frase lapidar que inicia o seu depoimento sobre Kant no Mil Folhas: “Um grande pensamento é aquele que transborda de sentido.”
Mas não procuraremos nós todos, ainda que não seja sob a forma de pensamento, as formas que consigam transbordar o sentido? O sentido é um recorte que operamos sobre um conjunto de possíveis desencadeados à nossa volta. Ao recortarmos, conferimos ao vivido um dada legitimidade e razão de ser. Mas quando o recorte se torna impossível à primeira vista, pelo facto de a matéria à nossa volta jorrar com um magma vulcânico, então pode dizer-se que o sentido transbordou (e que o código se fragilizou extremamente). Isso não acontece apenas com o pensamento de Kant (face ao qual são requeridas certas competências), mas também com muita da fruição dos objectos estéticos, ou com a mais elementar contemplação (desinteressada) da natureza ou dos objectos culturais. O mar, a corda estendida no quintal, as nuvens densíssimas do fim da tarde, a noite inquieta, o atalho selvagem perdido entre as ervas, o rosto espontâneo de quem agora me lê. Tudo, tudo o que advenha da preguiça para que tende para um determinado alheamento que nos transborda. E que felizmente nos contamina.