Sobre a razão das guerras. Uma resposta.
A razão morre no primeiro momento de uma guerra. Não a racionalidade, pois essa move-se no reino das possibilidades, mas antes aquilo que justamente conduz à própria guerra. Com efeito, quando o decurso de uma guerra se torna imparável e é, ele mesmo, já uma concatenação de actos em processo, essa razão original (que apenas se pode imaginar no quadro de uma multiplicidade), ou melhor, então, a conjugada e cumulativa panóplia de razões antes evocadas, torna-se agora num leque de novas vias com outras direcções e outros sentidos.
No fundo, a dissenção na órbita do político que se sentia no pré-guerra abre-se subitamente, expande-se através de manobras imprevisíveis e acaba por projectar na realidade o que antes era apenas um contraditório ao nível dos argumentos (e sobretudo das conjecturas). A razão, ou mais correctamente, a amálgama de razões que se ancora transitoriamente ao início das hostilidades deixa, na prática e nesta linha de ideias, de constituir um elemento da própria guerra. Ela passa a ser, a posteriori, um mero eco longínquo e, a uma certa distância, pode mesmo converter-se num corpo disseminado e dificilmente detectável. C. Schmitt chegou a dizer que a radicalização de uma guerra pode mesmo apagar o que a gerou, na medida em que o confronto deixa de ser o prolongamento de um contraditório para passar a ser a estratégia de uma extinção. Daí a ansiedade generalizada dos metadiscursos nos pós-guerras (ver post “Pés na Terra” de ontem).
O que está a acontecer hoje em dia, nos diversos desafios retóricos que cercam a ida guerra do Iraque, mais não é do que uma busca da memória (algo perdida) daquilo que antecedeu a própria guerra (com fins paradoxalmente judicativos). E tudo agora se sonda: o que terão dito os serviços secretos? O que terá proferido, no seu silêncio, Bush? O que terão congeminado os diplomatas D ou E, algures no Cairo, em Janeiro do ano passado? Onde se terá escondido a prova B ou C? O que é que precipitou a data de Março em vez da de meados de Fevereiro? Quem conseguiu ligar a organização terrorista Y com os elementos-chave do partido Baas a sul do Curdistão iraquiano, em Dezembro de 2002? (etc., etc., etc.).
A certa altura, a perda de razão confunde-se com a própria impossibilidade de representar e de reconstituir um quadro complexo que terá ligado a motivação e a acção no início da guerra. Como se tudo tivesse ficado em aberto, no momento em que o atrito do agir deixou de ser um vaticínio para passar a fundir-se com a pluralidade emaranhada (e já pouco controlável) do real.
Não, Charlotte, não me parece que haja uma determinada razão para uma determinada guerra. Diria antes que o que está em jogo nessa pergunta é uma espécie de repto acerca do controlo do tempo e dos factos que nele se processam, em várias direcções e ao mesmo tempo. Ou ainda, em termos cinematográficos, o que estará em jogo é sobretudo o modo como o contracampo se torna num fascinante produto para a nossa capacidade de nos imaginarmos como deuses.