A polémica do utente
Segui com interesse a mini-polémica entre o Abrupto e a Causa Nossa sobre a pertinência e as conotações do uso da palavra "utente". O que estará em causa na nota de Pacheco Pereira, provavelmente sem grande clarificação do próprio autor, é o facto de certos requisitos de linguagem, nos últimos trinta anos, terem construído mundos, adequando-se assim a diversas micro-comunidades de interesse (político, sindical, económico, etc). O mecanismo, mais semiótico do que propriamente semântico, procedeu sobretudo por ratio difficilis (o que ocorre quando não existe um tipo expressivo preformado para certos conteúdos subitamente emergentes) e criou um novíssimo aparato de linguagem que permitiu grande parte das discussões do pós-25 de Abril, bem como legitimou a identificação das palavras de ordem dos sectores emergentes que enunciavam os seus mundos, pela primeira vez, numa comunidade ainda à produra de um perfil democrático. É aí que a reconfiguração do uso da palavra "utente" adquire um novo nexo, embora, e sempre, dentro de contextos previsíveis e entretanto já sistematizados e codificados pela máquina social (daí a facilidade dos exemplos que Vital Moreira ostenta no seu contra-texto). Mas, a par da palavra "utente", poder-se-iam apontar muitas outras palavras que, no seu conjunto e diversidade, contribuíram para reedificar os mundos imaginários a partir dos quais e nos quais hoje em dia nos entendemos, concordando, discordando, discorrendo. Seria interessante elaborar uma lista desse tipo de lexemas (trabalhadores, processo, iniciativa, massas, empreendedores, auditoria, empresários, comissão, para além de um leque ilimitado de siglas, etc.)