terça-feira, 30 de dezembro de 2003

Esperanças

O meu colega das semióticas, José Augusto Mourão, fez acompanhar as suas simpáticas boas festas da homilia de Natal por ele escrita. Não resisto a publicar três extractos desse texto pelo seu brilho discursivo e teórico:

1.Num dos seus últimos escritos, A imutabilidade de Deus (1851), Kierkegaard fala de um “viandante que se queda ao pé de uma montanha enorme, impossível de escalar”. Os seus desejos e aspirações, a sua alma, visam as alturas, mas a montanha continua diante dele, imóvel, impossível de escalar. Pode o viandante chegar aos setenta anos: a montanha erguer-se-á ainda diante dele imutável, inacessível. Mil anos pasassem e a montanha continuaria imóvel e já mortos quantos tentaram escalá-la. A montanha inacessível e imutável é de facto, Deus. Esta será uma das últimas vezes em que um grande pensador vê Deus como o imutável e o eterno, em contraposição com a mutabilidade e a volubilidade do mundo.
2.Os teólogos dizem-nos que Deus é um ser atemporal que é infinito, omnisciente e omnipotente porque Ele é todo o ser,e toda a existência está contida nele. Não sabemos o que dizemos. Não sabemos o que significa existir fora do tempo, conter todo o passado e todo o futuro na existência presente. Não sabemos o que significa ser omnipotente, senão metaforicamente – o pantocrator grego que alude ao governante ou senhor de todas as coisas é mais fácil de conceber do que o seu equivalente latino omnipotens. Não sabemos o que é criar o mundo de nada. Tão pouco o que é ser omnisciente, nem o que é a Santíssima Trindade ou que coisa possa ser identificada de essência e existência.
5.Na nossa civilização tudo se tornou uma questão de fé. Vivemos na fé enquanto estamos na terra. “Fé” significa “fidúcia”. Fiamo-nos no guia quando não sabemos os caminhos; ter fé é um não ver e um não saber. Paulo di-lo: fiamo-nos nas coisas que não aparecem (non apparentium). Onde aparece a salvação é que está o perigo. Até a missão do Tirano que o homem democrático acalenta é “espiritual”: fazer do cosmo uma cidade, de todos os lugares um espaço, de todas as convicções a convicção sobre a eficácia da Técnica e de toda a fé uma só ética. O Anticristo “erit in omnibus subdole placidus” não é o oposto de Cristo, mas o seu símil. Quer trazer ao homem a sua paz, convencê-lo disso e encadeá-lo. É o ídolo da providência que o homem democrático adora: adorará aqueles que dispõem da força desta fé. Servirão aqueles que afirmam poder produzi-la, que saberão magicamente mostrar-lhes que a paz (segurança. Protecção, tutela) está em seu poder. O seu rosto será placidus, a sua violência não se exprimirá com guerra, mesmo “justa”, mas com a divinização das obras. E as obras parecem divinas quando possam produzir o Último (Cacciari, 1997: 128).


Há dias em que a esperança sabe violar o apertado vale do sentido. É então que me sinto mais agnóstico do que ateu, mais poeta do que morfeu, mais inquieto do que camafeu. E, no entanto, é nessas alturas que insisto em partilhar a esperança. Talvez a esperança dos cépticos, mas, de qualquer modo, a esperança.