quinta-feira, 20 de novembro de 2003

Corrente

Diz Pedro Mexia que prefere "sempre um texto bem escrito do qual discorde a um texto mal escrito com o qual concorde". De facto, um texto pouco conta. Está lá para povoar o encontro que ele próprio suscita, para desvendar quem o possa transformar num salto em direcção a qualquer coisa, está lá para designar a sua própria efabulação e alimentar a combustão de uma partilha. O que se diz um texto? O que se subsume ao não-dito. Um fiozinho débil a recortar as (tais) ilimitadas "condições de impossibilidade" tão vizinhas afinal do mar redutor dos possíveis. Um filósofo diz o que podemos conhecer. Um semiótico diz o que eventualmente interpretamos. Um antropólogo diz a invenção circunstancial do homem na modernidade. Um gramático diz regras através dos quais serí­amos falados por meio de textos. Um pescador diz a ubiquidade do mar. Um poeta diz porventura o indizí­vel e os seus lapsos. Um camionista diz os olhos do caminho. Uma estrela diz um nada parecido, mas sem faróis de nevoeiro e sem áreas de serviço. Um escritor, finalmente, diz o tempo e a voz de uma comunidade. Lobo Antunes é dos poucos que o faz entre nós.
Estou de acordo com Mexia, mas vou ainda mais longe. A concórdia e a discórdia pressupõem-se mutuamente no texto da vida, desenleiam a abertura de itinerários e de olhares, rasgam vias e mais e mais vias que acabam por silenciá-las. A turbulenta morfologia da concórdia e da discórdia (dois "celibatos" permanentemente traídos) é a do silêncio do efémero. Quem se lembra hoje da querela dos antigos vs modernos ou da querela medieval dos universais? Lemos os textos de Ockham e de Francis Bacon, por exemplo, com cerca de trezentos anos pelo meio, e percebemos ou fruímos a elasticidade e a decerto a fidelidade dos textos, mas silenciamos e removemos completamente os "conteúdos" em causa. A sua efemer-idade. Dar corpo a esse silêncio é estudar, i.e., é já descortinar um discurso possí­vel que emane do texto. Mas não é percorrer o que o texto diz. O texto nada diz nada.
O texto apenas diz a corrente com que navega.