A condição de A Falha
Ontem fui a Vila Viçosa e compareci no renovado cineteatro para participar no primeiro debate público sobre a relação filme-literatura no caso de A Falha. Eu comecei por dizer que o objecto imaginário que atravessa o romance e que se projecta (autrement) no filme não visa nenhum mundo ou nenhum universo específico, mas visa, isso sim, a passagem ou a travessia entre mundos ou universos. Por sua vez, o João Mário Grilo disse, já depois do visionamento, que o facto de o ímpeto trágico que domina o filme não se repercutir no final sobre as personagens (estas falam do passado como se nada se tivesse passado) se justifica essencialmente por ser muito ténue a ligação que se pressupõe entre o "nada que se passa" e o "tudo que se passa". E deu o exemplo do dia em que nasce um filho: nesse dia, existe a predicação ou quase a promessa que consiste em enunciar que aquele terá sido o dia mais feliz de uma vida, mas, depois, com o tempo, sabe-se que assim não é. E é um saber que nunca se confessa, que nunca se diz. Por outras palavras, jamais se agarra ou encorpa aquilo que é o maior ou o pior, i.e., o extraordinário. O fluir do tempo, a travessia inelutável entre as coisas e a errância dos blocos de que imaginamos serem constituídas as identidades acabam por ser os campos mais férteis para a Falha. Ao fim e ao cabo, A Falha é o secreto instrumento que atravessa e dá corpo a esse fio que liga, de modo quase invisível, a ilusão e a desilusão. A Falha persistirá assim para além das coisas e, no romance (no filme, também, claro!), ela acaba por aparecer como metáfora geológica, memorial, ontológica, mas sobretudo como reposição de um depois (no romance de redenção, no filme com halo trágico) em que o quotidiano volta sempre a ser risível e prisioneiro de um vislumbramento dominado pelo spleen.