O estado do ensino - 2 (Por que não tem Portugal uma direita e uma esquerda inteligentes ?)
O meu colega Eduardo Esperança volta a enviar-nos um texto de grande interese sobre o ensino superior em Portugal, mas não só. É da autoria de André Freire. Neste texto, reflectem-se alguns pontos que, há já algum tempo, ando a querer registar.
Nomeadamente, é um facto que gostava de viver num país onde as diferenças fossem afirmação e não rancor, e onde a direita pudesse apreciar a inteligência da esquerda e a esquerda pudesse apreciar a inteligência da direita. Contudo, o antinomismo continua a conduzir a carruagem. Se a direita está no poder, lá vêm os estigmas mais papistas que o papa que sobrevalorizam o não-estado e a linguagem acerca da linguagem da iniciativa (mais fetiches do que desejadas realidades). Se a esquerda está no poder, lá vêm os estigmas que repousam em palavras de ordem (outro fio de retórica) assim como o irresistível apelo do mercado acaba transformado em grupos de estudo. O estado, esse, fica sempre adiado para a categoria de pior estado (a administração, por exemplo, é intocável). O caso do ensino é emblemático no quadro deste desarranjo que as persistentes antinomias esquerda-direita (tão longe, na complexidade contemporânea, de recobrirem os verdadeiros problemas que se põem a todos nós) vão gerando.
Pena é, pois, que metade do país olhe com desconfiança destruidora a outra metade, pensando que é essa a forma de estatuir e marcar campos e diferenças. O mais decisivo, o gesto corajoso e reformador raramente aparece. Somos um país a viver no ponto morto do centro. Repetindo, no campo social e político, os últimos jogos da selecção nacional (jogo a meio campo e lances individualistas e casuísticos).
Caminhámos para a frente até à Expo-98, ritualizámos Timor em 1999, descobrimo-nos a falhar na convergência orçamental em 2001/2002 e, em 2003, acabámos a discutir os tabus e os pudores e as traições encarnadas na pedofilia. Somos um país a expiar, a projectar a sua catarse para fora do corpo que necessataria atenção e cuidado. Vejamos, no caso do ensino, portanto, onde começa e acaba essa carência, essa falha, essa falta de respeito e orgulho próprios (o corpo é que paga). Segue o texto enviado:
O Ensino Superior Público (ESP) cumpre, pelo menos, duas funções. Primeiro, proporcionar idênticas condições de ascensão social para os cidadãos, independentemente das suas origens sociais. Segundo, contribuir para a modernização do país, através da qualificação da mão-de-obra e, portanto, para a sua competitividade internacional.
Há vários exemplos do desinvestimento do actual governo no ESP e na Ciência, que contrariam a trajectória recente nesta matéria. Primeiro, as opções vertidas no Plano de Estabilidade e Crescimento, 2002-06: crescimento nulo das despesas anuais nominais com o ESP. Segundo, desinvestimento na formação pós graduada: pela primeira vez nos últimos seis anos o número de bolsas de investigação científica desceu para menos de 1000, nomeadamente por candidaturas não aprovadas. Terceiro, entre 2002 e 2003 (primeiros semestres), os maiores cortes orçamentais atingiram cinco ministérios entre os quais se encontram o da Educação (3º) e o da Ciência e Ensino Superior (5º) ("Expresso", 9/8/03). Ou seja, os cortes pretendem ter um carácter perene, não sendo mera resposta a constrangimentos conjunturais. Por outro lado, a hierarquia dos cortes evidencia as prioridades políticas.
Os cortes de vagas no ESP são uma medida emblemática deste desinvestimento. Várias foram as razões invocadas, de forma mais ou menos explicita, pela tutela (MCES) para tal medida. Primeiro, a solidariedade litoral versus interior. Contudo, os cortes incidiram não só nas universidades do interior e do litoral, como mais nas primeiras do que nas segundas. Segundo, o desinvestimento no ESP estaria relacionado com a quebra demográfica. Os cortes de vagas em 86 licenciaturas do ESP cujas vagas em 2003 são inferiores às colocações em 2002 demonstram que há muita procura que irá ficar de fora. Terceiro, a relevância social dos cursos: seriam efectuados cortes nos "cursos menos relevantes", decidindo o MCES cortes (cegos!) na área das ciências sociais e empresariais e poupando as artes, a saúde e os cursos científico-tecnológicos. Já foi demonstrado que os cortes atingiram também significativamente as áreas científicas e tecnológicas (PÚBLICO, 16/8/03). Mas os efeitos perversos desta política são evidenciados em dois exemplos muito concretos. Primeiro, o curso de Economia com a maior média nacional (U. do Porto) terá sido aquele que sofreu o maior corte de vagas nesta área. Segundo, a universidade com o maior corte de vagas (10 por cento), o ISCTE, tem preenchido sempre 100 por cento das vagas na primeira fase; os seus cursos (de ciências sociais, empresariais e tecnológicas) têm sido classificados (por avaliações independentes de peritos nacionais e internacionais) entre os melhores do país; de há anos a esta parte tem centros de investigação com classificações de "excelente" e "muito bom". Portanto, nem a suposta "relevância social", nem a qualidade foram resguardadas, antes pelo contrário.
Restam, para explicar os cortes de vagas, três outras razões não assumidas (claramente) pelo MCES. Primeiro, mera poupança financeira. Segundo, critérios ideológicos: os cortes nas universidades privadas não só não atingem as vagas ocupadas em 2002, como nalguns casos (Católica e Lusíada) não há qualquer corte, há aumento de vagas, desmentindo aquilo que o ministro defendeu no Parlamento, aquando da interpelação do BE sobre educação. Terceiro, eventuais cálculos políticos menos claros: em 2003 a Universidade da Madeira aumenta as suas vagas face a 2002 (3,7 por cento), apesar de, neste ano, apenas ter preenchido 72,3 por cento das vagas...
Dados actuais da UE (Key Figures, 2002), sobre o investimento no ES, mostram que Portugal está abaixo da média comunitária, bem como da Grécia e da Espanha. A UE está também atrás dos EUA nesta matéria e, por isso, tem apontado este investimento como prioritário. Mais, a população empregada em Portugal tem uma qualificação muito inferior à média da UE: ensino básico, 76,77 por cento e 29,67 por cento; ensino superior, 10,27 por cento e 24,17 por cento, respectivamente.
Este governo relegou o investimento no Ensino Superior e na Ciência para uma posição subalterna e, por isso, quebrou algo que deveria ser consensual entre a esquerda e a direita: o investimento na educação como forma de modernizar o país. Ou seja, não se espera que a coligação de direita se preocupe com os exponenciais aumentos de propinas que irão atingir os alunos que ficarão de fora pelo corte de vagas. Agora, a bem de Portugal, seria bom que pelo menos se mantivesse o consenso político em matéria de modernização, tanto mais que o modelo dos baixos salários e da precarização do trabalho está completamente esgotado.