quinta-feira, 7 de agosto de 2003

Milenarmente, Deus e o homem fecharam-se no ciclo ético da teodiceia, conspirando punições e inventando a natureza (boa e má) dos actos praticados. Secularmente, as ideologias e o homem fecharam-se no ciclo ético dos julgamentos finais no planeta terra (e já não no além), através de mil paraísos e miragens quasi científicos. Desse mesmo modo, também a literatura se fechou, desde as suas muitas origens, num pacto quase irrevogável entre esses variados ciclos éticos, profundos e marcantes, e a respiração à superfície do que deveria ser e é o essencial: o labor ficcional e o exercício da retórica (passe a metáfora maniqueísta da alma e corpo literários). Poder-se-ia afirmar que toda a relação fundamentalmente ética acabará por se esvair na medida em que o dogma (o Livro) também se esvair. Para a literatura, esse facto constituirá porventura uma libertação como terá sido, noutras circunstâncias pragmáticas, a romântica, a simbolista, a da pós-Primeira Grande Guerra (Proust, James, Pessoa, Joyce, etc.), ou mesmo a que gerou e viu gerar o nouveau roman. Quando cederem os pactos que ligam ainda muita da nossa literatura e da sua pesada hermenêutica - de modo vertical e rígido - ao hermetismo dos ciclos éticos, então a própria literatura deixará de se confundir com a anamorfose e a deformação da sua imagem mais comum e verosímil. Os blogues fazem parte desta desconstrução em lento movimento.