Existe hoje, já há algum tempo, um acordo tácito entre os que vêem na arte uma religião e aqueles que fazem da arte um produto sobretudo interessante para o mercado. Para além desta dicotomia muito estriada fica muita coisa, quase tudo, por dizer e vir ao ser. Embora eu não tenha nada contra o mercado, enquanto instrumento, e muito menos, como é natural, contra a afirmação da arte na sua mais radical subjectividade, a verdade é que vejo nos descendentes da apologia da arte pela arte a adulação pelo génio que, no mundo antigo e teo-semióco, podia ser comparado ao estatuto do profeta. Ambos viviam de capacidades inatas e ambos eram receptáculo de uma mediação e inspiração superiores. Isso bastaria para uni-los. É Kant que, na Crítica da Faculdade do Juízo, atira para a modernidade a noção de génio que caracteriza, no seu tempo, como “talento (dom natural) que dá regra à arte” e como “faculdade produtiva inata do artista”. Esta naturalidade inata do artista é ainda definida com mais rigor, quando o autor afirma: “Génio é a inata disposição do ânimo (ingenium), pela qual a natureza dá a regra à arte”. Ressalta nesta definição uma contradição entre, por um lado, a presença de uma “regra”, a qual jamais pode determinar o que é, ou não, a arte; e, por outro lado, a ausência dessa mesma regra, sem a qual não se poderia considerar artístico o que o é. Para sair deste aparente círculo fechado, Kant atribui ao “Génio” três qualidades essenciais. Sigamo-las: “(o Génio) - 1) é um talento para produzir aquilo para o qual não se pode fornecer nenhuma regra determinada, e não uma disposição de habilidade para o que possa ser apreendido segundo qualquer regra; consequentemente que a originalidade tem que ser a sua primeira propriedade;” - 2) “os seus produtos têm que ser ao mesmo tempo modelos, isto é exemplares; por conseguinte eles próprios não surgiram por imitatação e, têm que servir a outros como padrão de medida ou regra de julgamento;” 3) “que ele próprio não pode descrever ou indicar cientificamente como realiza o seu produto, mas que, como natureza, fornece a regra; e por isso o próprio autor de um produto, que ele deve ao seu génio, não sabe como para isso as ideias se encontram nele e tão pouco tem em seu poder imaginá-las arbitrária ou planeadamente e comunicá-las a outros em tais prescriçõees, que as põem em condição de produzir produtos homogéneos”. Conclusão: Onde dantes havia deus, há agora natureza. Onde dantes havia profetas, há agora génios.
Isto não quer dizer que eu não defenda a existência da genialidade, mas acredito que ela é filha da forma, do resultado, do trabalho, da surpresa, do imponderável, do risco e jamais de uma substância abstracta, de um dom já dado, ou de uma redoma espiritual em que tudo estaria à partida resolvido por vias de uma inspiração dir-se-ia supra-natural. Aos agentes mais rígidos na crença do mercado como um fim, teleológicos como os antigos crentes no paraíso, a ideia da arte enquanto religião serve às mil maravilhas. Nada melhor, às vezes, do que uma rapaziada a vender por milhões de Euros uns pregos espetados na parede. É contra este facilitismo que não quer pensar - e criar não deve ser um álibi para negar o meta-discurso e acelerar a ignorância - que me bato. Aos defensores da arte como religião serve sempre bem a máxima, segundo a qual quem cria nada tem que explicar. Tal como sucedia com os ícones medievais que, dentro das catedrais, falavam por si na sua inefabilidade mais essencial, repetindo sempre a mesma narrativa (possível) do mundo. Adoro a arte e acho o mercado e a democracia esteios fundamentais da vida, mas acho que estou a ficar, como diziam os marxistas quando existiam, demasiado anti-materialista. Não é que, às vezes, não sinta, como um arrepio súbito, o contrário, ou quase, do que disse até aqui. Mas é essa multiplicidade que faz o ser do blogue, aquele que o enuncia e que, queira-se ou não, é uma pessoa. E, por isso mesmo, a sua indecibilidade, a sua procura, a sua dúvida persistente.