sábado, 6 de março de 2010

Sacralização do livro

A imprensa de ontem tratou com carinho da destruição em massa de livros. O caso surgiu associado a uma editora que não carece de publicidade. A ministra da cultura recorreu ao termo "massacre" para descrever a situação e um dos senadores do nosso espírito mais ou menos desprevenido, Manuel Alegre, confessou-se "triste". O cenário não deixa de ser patético. Com todo o respeito pelos estados de alma próprios e alheios.

O clímax ressoou nas quase mitológicas palavras de Gabriela Canavilhas, quando referiu que a "importância do livro ultrapassa a noção de mercadoria". É um facto que herdamos culturalmente uma visão sagrada do livro. A ministra terá, pois, toda a razão. Confessemo-lo.

Em Ezequiel (3,1), o profeta ingere um rolo escrito que é imune aos sentidos e à impureza dos humanos e recebe depois ordens para comunicar o sentido dessas letras junto à "Casa de Israel" (3,4). O Apocalipse canónico do Novo Testamento apresenta-se como o duplo terreno de um Livro celeste, recebido por João através de um anjo intermediário (Ap 5,1). Na variante islâmica, a revelação é traduzida pelo "Tanzíl" (5,52) que remete para a ideia de 'descida do céu' do Livro eterno e único (a raiz do verbo "descer" é precisamente /NZL/).

Enfim, uma mercadoria não tem alma mas o livro, esse, seguramente tem. Aliás, basta ir ao grande banco do estado para aferirmos dos resultados de uma recente campanha de recuperação de livros usados. Eles ali estão a dormir nos seus escaparates, entregues ao desinteresse e à impaciência dos clientes e aforradores, muitas vezes carregadinhos e pó e de irremediável solidão. Não era melhor fazer aquilo por que, hoje em dia, mais se clama que é... a reciclagem? Sim, ser-se íntimo das causas do ambiente. E ser-se, em primeiro lugar, racional.

Num mercado em que a produção de livro é a todos os títulos irracional, quase um livro por hora, o que se poderia esperar? Que as empresas se endividassem com milhares de metros quadrados de armazéns apenas por causa de Ezequiel, João ou Maomé? Creio que não. Quem tem uma empresa sabe o que significa a palavra despesa. O que acontece bem menos nos corredores do estado e sobretudo na arejada brisa das mentes que herdam, desde finais de setecentos, o impoluto selo de "intelectual".

As pessoas lêem se lhes apetece, quando precisam e se gostam. A liberdade vive por cima e nos antípodas das cinzas das inquisições. De qualquer modo, o consumo de livros é, hoje em dia, desproporcionado face aos níveis de leitura. Ao mercado cabe resolver os desajustes e irracionalidades por si criados. De paternalismo e 'descidas do céu' - sem força da gravidade a animar a parada - está o inferno cheio.

(hoje no Expresso)