segunda-feira, 29 de março de 2010

Os alarmes do país literário


No dia em que Maria Helena da Rocha Pereira foi anunciada como a – aliás justíssima – vencedora do Prémio Vida Literária da Associação Portuguesa de Escritores, a jurada Teresa Martins Marques enalteceu a carreira da ensaísta, sublinhando a importância e a pertinência do prémio, devido, entre outros factores, ao facto de vivermos “…num tempo em que somos marcados pela literatura light”.
O argumento seria secundado, nesse mesmo dia, curiosamente um chuvoso 8 de Março, na rádio, pela voz do próprio presidente da APE, o escritor José Manuel Mendes.
Em Julho do ano passado, Pedro Mexia escreveu uma interessante crónica no Público acerca de um livro de Fátima Lopes e, na circunstância, referiu o grande impacto da literatura light – e das suas derivadas – através de um curioso contraste: “Fátima Lopes, uma apresentadora de televisão, vendeu quase cem mil exemplares; já as obras do mais recente Prémio Camões nem se encontram nas livrarias”. “O mercado editorial é o que é: uma grande biblioteca fútil”.
Já este ano, a propósito do Prémio Universidade de Coimbra 2010, atribuído ao escritor Almeida Faria e ao cineasta Pedro Costa, o reitor da centenária instituição explicou o sentido e o critério das escolhas como tendo a sua origem numa real necessidade de justiça. O objectivo foi, pois, o de “repor alguma justiça quanto à exposição pública dos premiados”, devido ao facto de “a nossa sociedade” ser “muito ingrata com os nossos artistas. Esta é mais uma tentativa que fazemos para aumentar a notoriedade de nomes importantes da nossa cultura”.
A ingratidão da sociedade diante dos seus artistas e escritores de maior qualidade parece aliar-se à “biblioteca fútil” que cada vez mais caracteriza o “nosso mercado editorial”. Uma tal cadeia de factos tem levado os jurados dos nossos prémios mais prestigiados a enfatizarem a urgência de o país culto se demarcar a ferros desta atmosfera crescentemente “marcada” pelas expressões “light”.
Dir-se-ia que o país literário anda alarmado e quase entrincheirado diante de uma terrível ameaça que, na falta de mais adequada designação, é definida pela leveza ligeira do mundo “light”. Ronald Augusto sintetizou, há alguns meses na Sibila**, esta omnipotência da mediania de modo revelador: “O mercado canoniza uma forma média de literatura que pode ser representada por um estilo a meio caminho da fórmula publicitária e do literário em tom pastel. Esta literatura light, que qualquer indivíduo pode “acessar”, é tão canônica quanto à mobilidade social o possa permitir. O escritor canonizado será aquele cujo perfil se revelar mais apto a conquistar a melhor fatia do bolo durante o maior tempo possível. De resto, o mercado dinamizado amplia tanto as chances de sobrevivência, quanto de aniquilamento do nosso grande pequeno literato. Por fim, ao manter o debate “literário” em nível de atacado, o mercado, ele mesmo, é que acaba por se canonizar.”
Dir-se-ia, para não marcar este sucessivo vestígio contemporâneo de nódoas com lições de moral, que ainda um belo se vai acabar por cumprir a profecia de João de Miranda m.. Ora leia-se: “… o meu amigo gameiro ganhou o prémio literário joão de miranda m., vencedor do prémio joão tordo de literatura, que ganhou o prémio josé saramago de literatura, vencedor do prémio nobel de literatura que ganhou o prémio bertha kinsky da literatura. O meu amigo santosilva é candidato ao prémio gameiro de literatura…”.
O humor é, ao fim e ao cabo, a face mais duradoura dos grandes abismos. E a justiça – essa sonhada equidade – será sempre alheia à profundidade da falésia e ao impacto da vertigem. Nada mais resta aos nossos melhores escritores e a todos nós, portanto, do que trabalhar. Trabalhar muito. Para que novos e bons livros apareçam e tranquilizem o mais inexorável dos vícios da existência. Deixem, pois, que as distracções e o entretenimento se distraiam e se entretenham à vontade! Que a redundância viva feliz na casa que é, afinal, a sua.
(no PNETliteratura hoje)