domingo, 2 de dezembro de 2007

Episódios e Meteoros - 59

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(crónica publicada desde anteontem no Expresso Online)
(ver também no meu blogue de crónicas)
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O sagrado: uma máscara de nós próprios
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Foi Ducrot quem escreveu que o fenómeno religioso não se poderia explicar, caso “a própria língua não tornasse possível a fala de alguém ser simplesmente a fala de outrem”1.
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Este ponto de vista simplista, mas interessante, põe em paralelo a voz do profeta que transmitia a voz de deus e o encantamento digital das mil mediações que nos repõem, hoje, o mundo na nossa sala de estar. Há em ambos os casos uma distância entre a voz que se ouve e uma outra voz que se oculta.
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Mas eu não creio, sinceramente, que o fascínio do sagrado esteja nesse jogo – por mais sofisticado que seja – entre bastidores e boca de cena. O sagrado não é, pois, apenas uma forma dramatúrgica de conforto.
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O que nos atrai ao sagrado é o mesmo que faz o homem pensar. Nós pensamos com imagens que se reproduzem como cerejas (Damásio, em O Sentimento de Si, prefere falar de um fluxo de imagens que se move “para a frente no tempo, depressa ou devagar, de forma ordeira ou sobressaltada e, algumas vezes, avança não apenas numa sequência mas em várias”2). Apesar de não nos podermos comparar a um catavento, andamos, por vezes, lá perto: passeamo-nos na rua, entramos num café, guiamos um carro e, ao lado da concentração, a nossa cabeça é um moinho sempre a rodar, sempre em movimento.
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O que é que esta turbulência da nossa mente tem a ver com o sagrado? É simples. O sagrado baseia-se no mistério. E há uma vantagem no mistério que é, ao mesmo tempo, também, a sua essência. É que o mistério é como uma sombra em torno da qual é possível construir ilimitados percursos. Não se trata de explicar por que razão essa sombra existe, mas de a contornar, de a percorrer, de a envolver, porventura de a amar. Grande parte da existência e do discurso dos homens faz-se a partir dessa circum-navegação que nunca mais acaba. Um ritual de imagens, ritos, palavras e gestos que se reproduz, ao longo do tempo, apenas para sublinhar a importância da sombra.
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No fundo, o labirinto do culto é muito semelhante ao labirinto com que as imagens encenam a consciência. O cinema, quando foi inventado, também trouxe para o lado de fora da nossa cabeça esta luta livre entre a montagem e o modo desabrido com que as imagens se podem conotar ou reproduzir, na nossa frente, sem cessar. O cinema é, sob o ponto de vista físico, como substância, uma verdadeira sombra. Melhor: sombra e luz que se alternam. E que, com o seu movimento, nos mobilizam a pulsação mais vital.
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O sagrado é, ao fim e ao cabo, um modo confortável de imitar e plagiar a nossa mente, mas é também a radiografia permanente do seu funcionamento. É por isso que o sagrado e o homem se confundem. O cinema foi, ao longo do seu período pioneiro, tal como o sagrado o foi no tempo das “Escrituras”, uma ilustração fantástica e fantasmática deste desejo profundo de brindarmos ao universo com uma máscara de nós próprios.
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1-Enunciação em Enciclopédia Einaudi, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1984/II, pp. 387.
2-O Sentimento de Si - O corpo, a emoção e a neurobiologia da consciência, Publicações Europa-América, Lisboa, 2000, p.362.