quinta-feira, 5 de julho de 2007

Touradas e copinhos de leite - 3

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Bruno: respondo neste post ao teu segundo texto sobre as touradas, o qual, por sua vez, respondia ao meu, também, segundo post. Deixemos as cronologias pitagóricas de lado e entremos decididos na arena:
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1 – O “amplo espectro” que referes serve também para quem, como eu, na minha condição de não aficionado militante (e até de vivencialmente desfasado do meio que germina e qualifica as tauromaquias), não deixa de afirmar um espaço de tolerância telúrico, estético e mitológico onde cabem, com toda a naturalidade, as touradas.
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2 – Saberás provavelmente melhor do que eu como o discurso da “civilização” vs. “barbárie” serve - na boca de muito facilitismo - para tornar a tourada numa manifestação “atrasada” e própria apenas de uns quantos “machos incultos” e meio selvagens. O discurso sobre a tourada não é um discurso circunscrito pela racionalidade e, geralmente, apesar da latitude dos espectros, é na antinomia intolerante e na ‘correcção’ circunstancial que os variados argumentos ‘contra’ – a par, naturalmente, de muitos ‘prós’ – são talhados. É o pobre mundo dos ‘topoi’ no seu melhor (“repudiar”, por exemplo, evidencia, de imediato, uma recusa, uma morte, uma mudez que se desejará impor).
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3 – Não entendo bem o teu terceiro ponto. Mas é evidente que o relativismo existe, mesmo quando o hiperterrorismo parece (para alguns – será a esses a que te referes?) menos ameaçador para o modo de vida, ou para o livre usufruto do quotidiano, do que um indefeso touro a sangrar numa arena. Fernando Gil falava de "ideologia global", quando se referia ironicamente à miséria do Ocidente por ter cometido o crime de inventar a liberdade, há umas centenas de anos, tal como ainda a entendemos hoje. No nosso tempo, a pouco e pouco, a liberdade está a tornar-se numa ré diante de jurados “fracturantes”. Já agora: a expressão “apunhalarem touros a trote” está na linha do escárnio futebolês e menos, portanto, na de um entendimento – ou desejo de avizinhamento – recíproco, não está? Vendo bem, o interlocutor não é forcado. Embora aprecie os galanteios, danças, devaneios e erros grosseiros e até físicos de uma boa pega.
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4 – A questão reposta neste ponto era, de início, menos burlesca. Confesso. Tratava-se tão-só de perceber a natureza da seriedade com que o sofrimento do touro é sublinhado pelos porta-vozes que aparecem, de vez em quando, no espaço público com aquele ar de sacerdote purificado que trocou as viagens apocalípticas ao cabo do ‘Além’ pela justiça a que deve obedecer – concordo – o transporte dos animais. Afinal, é preciso comer carne com alguma qualidade.
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5 – As regras sobre o sofrimento desnecessário atravessam o emergir moderno e projectam-se sobre nós, na actualidade, como que a preencher o ‘Dever Ser’ pesado e vertical que foi abandonando, nas últimas décadas, as nossas sociedades (não leves a mal o possessivo, na medida em que ele releva um facto e não um desígnio). No seu tempo, Hemingway foi um herói (muito incómodo): macho, fumador, homem de prazeres, amante da Fiesta. Hoje os heróis são feitos de fluxo: mecanismos automatizados que obedecem a vontades prévias reguladas pela instantaneidade high tech. Fluxo de consumir, de viajar, de expressar, de ver, de pensar, etc. O mainstream organiza-se assim, i.e.: através da disciplina pouco livre com que se adopta (com novos tipos de pudor) a ideia de um mundo indolor, baseado na simulação de um corpo protésico e quase eterno que o comandaria (as profecias “cyborg” levam ao extremo este ‘item’). Não é por acaso que a eutanásia anda agora nas bocas do mundo. Concordo, pois, contigo: não há medidas para o sofrimento desnecessário, incluindo “as da tourada”, ainda que os novos moralismos (que são amorais no modo como se processam em fluxo) tentem criá-las nas novas voragens socialmente correctas.
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6 – A banalização! Ó Bruno por que razão convocas a minha belíssima infância e as tauromaquias populares e enraizadas (como me lembro delas, a partir do meu posto de estóica observação!), tu que vives num mundo em que as inundações, as guerras, os atentados, as mortes na favela, as quedas de avião e os terrorismos globais se banalizaram tão absurda e radicalmente? Não te parece paradoxal? Não te parece que há aí qualquer coisa que falha (e que está a mais ou a menos)? Não te parece que anda por aí uma demissão face a causas reais que se quedam quase sempre pela ingenuidade inoperante do “alter” e do “anti”? Não te parece que a falência fatal de algumas cartilhas políticas obrigou contingentes de “desempregados” (metáfora pessoana) a reinventarem objectos singulares para preencher a ira e o desencanto em que subitamente se reviram? Não achas que as touradas constituem para tais contingentes “espectros” ou “fantasmas” (mais ou menos ópticos) que dão a sensação (o simulacro, mais uma vez) de que uma qualquer “luta continua”? Isto tudo, claro está, apesar de se pensar, não sobre o vazio, mas sobre um perímetro mínimo onde o entendimento deveria ser – e eu creio que deve ser – um esteio para a tolerância.
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7 – A terminar, diria que não há aqui, de facto – ao contrário do que legitimamente pensarás –, uma questão de solidariedade para com as “minhas” origens. O que há é uma visão que tende a reconhecer o livre usufruto dos actos a quem os pratica. A ti, a mim, aos toureiros e aos aficionados. A liberdade não cai como uma receita, ou uma denegação imposta, sobre as nossas cabeças; ela inicia-se em nós. E o bom senso deverá articular oposições, posições e gostos. A questão do tabaco não anda muito longe desta: eu, por exemplo, não fumo; mas, cá em casa, todos os fumadores podem fumar. E bem sei que fumar faz mal e faz sofrer os Outros. Tal como as touradas fazem sofrer os ‘seus’ Outros. Mas não é o sofrimento, apenas, o que está em causa nas touradas. Pensá-lo… reflecte sinceramente uma visão reducionista. Se assim fosse, Bruno, elas já não existiriam. Se assim fosse, Bruno
, as touradas não teriam sido motivo para a criação de tantas e tantas mensagens artísticas ricas e diversas. É porque existe algo mais nelas. Muito mais. Algo que ressoa de muito longe e que tem que ver profundamente connosco. Goste-se ou não do que somos, ou do que pensamos que infalivelmente não somos – ou seremos. Um pouco de humildade para observar e entender o que não é do ‘nosso mundo’, ou do 'nosso campo', não faria mal a ninguém. Há muitos anos, talvez há uns vinte, que penso assim. E conto já quase com 53 anos.