e
Nancy Mitford, A procura do amor, Livros Cotovia, Lisboa, 2007 (Tradução de Carla Hilário de Almeida Quevedo)
e
e
Pré-publicação:
e
1
1
e
“Existe uma fotografia da tia Sadie e dos seus seis filhos sentados à volta da mesa do chá, em Alconleigh. A mesa está colocada, como antes, agora e sempre, no hall, à frente de um enorme lume feito com toros. Por cima da lareira, despretensiosamente à vista na fotografia, está pendurada uma pá de trincheira, com a qual, em 1915, o tio Matthew matou à pancada oito alemães, um por um, à medida que se arrastavam para fora dos abrigos subterrâneos. Ainda está coberta de sangue e cabelos, objecto de grande fascínio para nós quando crianças. Na fotografia, a cara da tia Sadie, sempre bonita, parece inesperadamente redonda, o cabelo inesperadamente tufado e a roupa inesperadamente desleixada, mas não há dúvida de que é ela quem está ali sentada com o Robin em mares de rendas, refastelado sobre o joelho. Ela parece não saber bem o que fazer com a cabeça do miúdo e a presença da Ama, à espera de o levar dali, embora não esteja visível, é sentida. As outras crianças, entre a Louisa, com onze anos, e o Matt, com dois, estão sentadas à mesa com vestidos de festa ou bibes franzidos, e pegam em chávenas ou canecas, dependendo das idades, todos a olhar fixamente para a câmara com uns grandes olhos, muito abertos por causa do flash, e ar de sonsos. Ali estão, parados como moscas, na cor âmbar do momento — a câmara faz clique e a vida continua; os minutos, os dias, os anos, as décadas afastam-nos cada vez mais daquela felicidade e da promessa de juventude, das esperanças que a tia Sadie terá neles depositado e dos sonhos que eles sonharam para si próprios. Muitas vezes penso que não há tristeza mais dilacerante do que a dos velhos retratos de grupo de família.
Em criança, eu passava as férias de Natal em Alconleigh; era uma rubrica regular na minha vida e, embora algumas dessas férias tenham decorrido sem nada muito específico para recordar, outras destacaram-se por causa de acontecimentos dramáticos e ganharam um carácter próprio. Foi a altura, por exemplo, em que houve um incêndio na ala dos criados, a altura em que o meu pónei caiu sobre mim no riacho e quase me afogou (não chegou a acontecer porque depressa o arrastaram dali para fora, embora, segundo consta, haja quem tenha observado umas bolhinhas de ar). Houve drama quando a Linda, aos dez anos, tentou suicidar-se para se juntar a um velho e malcheiroso Border Terrier, que o tio Matthew tinha mandado abater. A Linda apanhou e comeu um cesto cheio de bagas de teixo, foi encontrada pela Ama e obrigada a ingerir mostarda e água para vomitar. Ouviu depois “uma palavrinha” da tia Sadie, levou um puxão de orelhas do tio Matthew, passou vários dias de cama, e ofereceram-lhe um cachorro Labrador, que depressa tomou o lugar do velho Border nos seus afectos. Houve um drama ainda maior quando a Linda, aos doze anos, descreveu às filhas de uns vizinhos que tinham ido tomar chá lá a casa, aquilo que ela julgava serem as “coisas” da vida. A apresentação que a Linda fez dessas “coisas” foi tão macabra que as crianças deixaram Alconleigh num pranto medonho, com os nervos debilitados para sempre e muito reduzidas as hipóteses futuras de uma vida sexual saudável e feliz. O resultado foi uma série de castigos terríveis, desde uma sova, dada pelo tio Matthew, até ficar a almoçar no quarto durante uma semana. Houve as férias inesquecíveis em que o tio Matthew e a tia Sadie foram ao Canadá. As crianças Radlett liam os jornais avidamente, todos os dias, na esperança de verem a notícia de que o navio onde os pais viajavam se afundara com todos os passageiros a bordo; ansiavam por ser órfãos — sobretudo a Linda, que se via como a Katy do livro What Katy Did, com as rédeas da casa nas suas mãos pequenas mas capazes. O navio não embateu contra nenhum icebergue e sobreviveu às tempestades atlânticas; entretanto, tivemos umas férias maravilhosas, livres de regras.”
“Existe uma fotografia da tia Sadie e dos seus seis filhos sentados à volta da mesa do chá, em Alconleigh. A mesa está colocada, como antes, agora e sempre, no hall, à frente de um enorme lume feito com toros. Por cima da lareira, despretensiosamente à vista na fotografia, está pendurada uma pá de trincheira, com a qual, em 1915, o tio Matthew matou à pancada oito alemães, um por um, à medida que se arrastavam para fora dos abrigos subterrâneos. Ainda está coberta de sangue e cabelos, objecto de grande fascínio para nós quando crianças. Na fotografia, a cara da tia Sadie, sempre bonita, parece inesperadamente redonda, o cabelo inesperadamente tufado e a roupa inesperadamente desleixada, mas não há dúvida de que é ela quem está ali sentada com o Robin em mares de rendas, refastelado sobre o joelho. Ela parece não saber bem o que fazer com a cabeça do miúdo e a presença da Ama, à espera de o levar dali, embora não esteja visível, é sentida. As outras crianças, entre a Louisa, com onze anos, e o Matt, com dois, estão sentadas à mesa com vestidos de festa ou bibes franzidos, e pegam em chávenas ou canecas, dependendo das idades, todos a olhar fixamente para a câmara com uns grandes olhos, muito abertos por causa do flash, e ar de sonsos. Ali estão, parados como moscas, na cor âmbar do momento — a câmara faz clique e a vida continua; os minutos, os dias, os anos, as décadas afastam-nos cada vez mais daquela felicidade e da promessa de juventude, das esperanças que a tia Sadie terá neles depositado e dos sonhos que eles sonharam para si próprios. Muitas vezes penso que não há tristeza mais dilacerante do que a dos velhos retratos de grupo de família.
Em criança, eu passava as férias de Natal em Alconleigh; era uma rubrica regular na minha vida e, embora algumas dessas férias tenham decorrido sem nada muito específico para recordar, outras destacaram-se por causa de acontecimentos dramáticos e ganharam um carácter próprio. Foi a altura, por exemplo, em que houve um incêndio na ala dos criados, a altura em que o meu pónei caiu sobre mim no riacho e quase me afogou (não chegou a acontecer porque depressa o arrastaram dali para fora, embora, segundo consta, haja quem tenha observado umas bolhinhas de ar). Houve drama quando a Linda, aos dez anos, tentou suicidar-se para se juntar a um velho e malcheiroso Border Terrier, que o tio Matthew tinha mandado abater. A Linda apanhou e comeu um cesto cheio de bagas de teixo, foi encontrada pela Ama e obrigada a ingerir mostarda e água para vomitar. Ouviu depois “uma palavrinha” da tia Sadie, levou um puxão de orelhas do tio Matthew, passou vários dias de cama, e ofereceram-lhe um cachorro Labrador, que depressa tomou o lugar do velho Border nos seus afectos. Houve um drama ainda maior quando a Linda, aos doze anos, descreveu às filhas de uns vizinhos que tinham ido tomar chá lá a casa, aquilo que ela julgava serem as “coisas” da vida. A apresentação que a Linda fez dessas “coisas” foi tão macabra que as crianças deixaram Alconleigh num pranto medonho, com os nervos debilitados para sempre e muito reduzidas as hipóteses futuras de uma vida sexual saudável e feliz. O resultado foi uma série de castigos terríveis, desde uma sova, dada pelo tio Matthew, até ficar a almoçar no quarto durante uma semana. Houve as férias inesquecíveis em que o tio Matthew e a tia Sadie foram ao Canadá. As crianças Radlett liam os jornais avidamente, todos os dias, na esperança de verem a notícia de que o navio onde os pais viajavam se afundara com todos os passageiros a bordo; ansiavam por ser órfãos — sobretudo a Linda, que se via como a Katy do livro What Katy Did, com as rédeas da casa nas suas mãos pequenas mas capazes. O navio não embateu contra nenhum icebergue e sobreviveu às tempestades atlânticas; entretanto, tivemos umas férias maravilhosas, livres de regras.”
e
Actualização das editoras que integram o projecto de pré-publicações do Miniscente: A Esfera das Letras, Antígona, Ariadne, Bizâncio, Campo das Letras, Colibri, Gradiva, Guerra e Paz, Livro do Dia, Magna Editora, Magnólia, Mareantes, Publicações Europa-América, Quasi, Presença, Sextante Editora e Vercial.
Actualização das editoras que integram o projecto de pré-publicações do Miniscente: A Esfera das Letras, Antígona, Ariadne, Bizâncio, Campo das Letras, Colibri, Gradiva, Guerra e Paz, Livro do Dia, Magna Editora, Magnólia, Mareantes, Publicações Europa-América, Quasi, Presença, Sextante Editora e Vercial.