sexta-feira, 13 de julho de 2007

Escavações Contemporâneas - 38


LC
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O sorriso do arquivo no tempo da rede
(hoje: Paulo Tunhas)
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O que ficará do comunismo? (1990*)
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O que é que vai permanecer do comunismo? Não falo do comunismo enquanto força internacional e doutrina, parece que ainda, na União Soviética. Para saber isso, basta ler as crónicas que o Prof. Adriano Moreira escreve às quartas--feiras no «Público»; só por desatenção ou má-fé se pode ficar sem pelo menos um vislumbre do futuro do mundo depois de tão eruditas e científicas explicações. Mas não é disso que se trata. O que se trata é de saber o que é que vai ser do comunismo enquanto pronto-a-vestir intelectual e afectivo no seguimento do eclipse do sol da terra. O que se trata é de procurar compreender como é que o espírito sopra para que milhares de pessoas em Portugal possam continuar unidas «às realidades inefáveis e desconhecidas de um modo inefável e desconhecido», para falar como o Pseudo-Dionísio.

É quase tão misterioso saber se os comunistas acreditam no comunismo como ter a certeza da fé em Deus nos católicos, embora certamente menos interessante. Em relação aos católicos é, digamos, natural que assim seja. A crença e a descrença devem, em princípio, formar um todo: «temor e tremor» e esperança podem perfeitamente andar de mãos dadas com desesperada coragem. Mesmo que a totalidade dos meus amigos católicos me pareça gente pouco dada a intimidades com «as realidades inefáveis e desconhecidas» e eminentemente dedicada às coisas dizíveis e tangíveis, eu devo sempre reconhecer que há algo que não posso saber. Só Deus sabe os segredos que as pessoas guardam.

Mas o problema com o comunismo é obviamente diferente. Enquanto que é literalmente impossível provar que Deus não existe, as provas do terror comunista são ostensivas até mais não. Eram-no desde há muito, mas negá-las agora exige um exercício de cegueira tão extraordinário que excede até as capacidades de gente excepcionalmente dotada para o efeito, como os comunistas. Claro que se pode ainda—pode-se sempre—recorrer ao argumento da «bondade» da doutrina e culpar a realidade crua e imperfeita dos «desvios» e dessas coisas desagradáveis que aconteceram. Ainda no outro dia um historiador russo, Medvedev, dizia que o capitalismo demorou muito tempo a reconhecer os direitos humanos: seria necessário dar pelo menos igual tempo ao comunismo.

O menos que se pode dizer é que é um disparate puro e simples. Passando generosamente por cima do facto do que é dito em relação ao capitalismo ser apenas uma meia-verdade, é como se alguém, depois de conseguir que a sua cozinheira, finalmente, cozinhasse bem, ou pelo menos decentemente, a substituísse por outra perfeitamente incapaz de fazer sequer uma omeleta e destinada a envenenar a família aos longo dos anos, com o argumento sumamente estúpido de que, quando aprendesse a cozinhar, alimentaria melhor os sobreviventes e os descendentes destes, caso os houvesse.

Como dizia Necker a Turgot, referindo-se a uma situação apesar de tudo menos preocupante: «Não consigo compreender esta fria compaixão intelectual pelas gerações futuras, que deverá endurecer os nossos corações contra os gritos de dez mil infelizes que agora nos rodeiam». A compaixão intelectual continua duvidosa e os números são muitos milhões.

O comunismo enquanto tal já não é susceptível de fé. Ultrapassou, por assim dizer, o seu limite de elasticidade. Mas a fé comunista, perdido o seu objecto primeiro, encontra facilmente um segundo objecto, íntimo e difuso. Os sonhos que se transformam, para certos homens, num ritual que é uma espécie de comércio com o sentido do mundo (o sentido do mundo confundindo-se com a ilusão da sobrevivência), são os últimos a desaparecer— e a matéria, definitivamente, não conta. A fé comunista, perdido o seu objecto primeiro, não vai no essencial mudar. Do Dr. José Magalhães ao pequeno militante professor num qualquer liceu do país, as mesmas coisas, estúpidas e prodigiosas de ortodoxia, irão ser repetidas, por exemplo, sobre a cultura. A litania dos infinitos direitos, o que com justeza se poderia chamar a obrigação aos direitos, a visão conspiratória do mundo que defende os pequenos talentos egotistas e lhes explica a própria nulidade disfarçada de produto de conjuras, perpetuar-se-ão numa linguagem a que alguém perfeitamente deu o nome de «baixo latim de legionários derrotados», espécie de ersatz daquela antiga comunhão com as «realidades inefáveis e desconhecidas», agora tristemente dizíveis e tangíveis. E então isso — essa cadeia de reflexos de um filantrópico e elitista ódio ao mundo, turvo, meio solene, despeitado, raivoso de poder—será, como já quase é, a última matéria restante dos sonhos solares do Dr. Cunhal. Provavelmente será também a mais durável. E ninguém diga que está bem. O baixo latim está em todo o lado.
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*O Primeiro de Janeiro, 29 de Julho de 1990