sexta-feira, 6 de julho de 2007

Escavações Contemporâneas - 36


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O sorriso do arquivo no tempo da rede
(hoje: Paulo Tunhas)
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Felicidade
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"Aristipo de Cirene, que viveu, parece, por volta da primeira metade do século IV a.C., dizia que «três são os estados relativos ao nosso temperamento: um, pelo qual sentimos dor, semelhante à tempestade no mar; outro, pelo qual sentimos prazer, parecido com a leve onda, porque o prazer é um leve movimento, comparável a uma brisa favorável; o terceiro é o estado intermediário, pelo qual não sentimos dor nem prazer, análogo à calma do mar». E o prazer é para ele uma coisa diversa da felicidade: enquanto que o primeiro é imediatamente buscável, a segunda — que é algo como o sistema de todos os prazeres particulares passados, presentes e futuros — é-nos possível apenas indirectamente, por meio dessas leves ondas, leve movimento das brisas favoráveis.
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A felicidade, pelo menos aparentemente, é para nós tão «vulgar» como o era para Aristipo de Cirene. É uma mistura de prazer, lembrança e esperança dele, uma espécie de harmonia incompreensível, porque todos os tempos se dividem perpetuamente e nos deixam inermes e abandonados no seu movimento. Para mais, a felicidade é notoriamente menos conspícua que o prazer. O prazer é, em geral, facilmente reconhecível; a felicidade não. A mais terrível pergunta de todas é: «foi, até agora, feliz?». É terrível porque parece que não faz sentido. Não faz sentido responder que sim: o título mais obsceno que alguma vez algum livro recebeu foi certamente o da autobiografia de Pablo Neruda, Confesso que vivi. Ou então deve dizer-se isso exactamente porque não faz sentido. Mas responder que não faz tão pouco sentido como responder que sim: como é que se pode saber que não se foi feliz? E talvez também se deva dizer isso por não fazer sentido.
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Há algo na felicidade que não tem nada que ver com o verbo ter. A verdadeira raiz da felicidade é a admiração. É-se feliz na medida em que se admira a felicidade, em que se soube admirar a felicidade própria e alheia. Mas é-se feliz como se não fosse connosco. A felicidade é a coisa mais impessoal do mundo, mesmo que se manifeste pessoalmente. A felicidade é muito exactamente uma Ideia, no sentido de Platão. Algo que nos esforçamos por imitar mas que pertence a uma categoria ontológica diferente.
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E nesse sentido pode coexistir, mesmo que imperceptivelmente, com a dor, o que não acontece, é claro — a não ser nos limites literários —, com o prazer. Dor e prazer são termos contrários; dor e felicidade não. Enquanto houver força para admirar a Ideia da felicidade ela existe - de uma maneira ou de outra, mesmo que estejamos completamente despossuídos dela. Em nenhum lugar se vê isso melhor do que na música, que é aquilo que Schopenhauer chamava «órgão do sonho». E na poesia também, quando é uma espécie de música.
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Platão dizia que a filosofia é uma preparação para a morte. A morte não é uma Ideia, e por isso é impensável. E a dedicação filosófica é uma dedicação ao pensável, um esforço para transportar o pensável para além do impensável, nisso residindo o lado inútil da filosofia, que é o seu lado não prático. Mas é só através de uma dedicação deste tipo que a felicidade pode ser admirada e imitada.
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Talvez então que a recordação dos leves movimentos, das brisas favoráveis a que se referia Aristipo de Cirene deva ser uma recordação, e uma esperança, por imitação. A felicidade e a harmonia não foram nunca possuídas porque são literalmente insusceptíveis de posse: são susceptíveis apenas de admiração."
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Segundas - João Pereira Coutinho
Terças - Fernando Ilharco
Quartas - Viriato Soromenho Marques
Sextas - Paulo Tunhas
Sábados – António Quadros (António M. Ferro, Org.)