quarta-feira, 6 de junho de 2007

Pré-publicações - 35

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Pré-publicação:
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"Há um hiato de quase dois mil anos entre Platão e Thomas More, durante o qual a utopia parece ter desaparecido, pelo menos no Ocidente. A Vida de Licurgo, de Plutarco, recua a um passado mítico; o ensaio de Cícero sobre o Estado é uma obra sem grande importância; e A Cidade de Deus, de Santo Agostinho, destaca-se sobretudo pelo brilhante ataque jornalístico à velha ordem de Roma, que faz lembrar as diatribes actuais de Maximilian Harden.[1] Tanto quanto sei, não existe, para além destas obras, praticamente nenhum outro texto que faça sequer alusão à questão da utopia – excepto numa concepção de utopia enquanto vaga época áurea do passado onde todos os homens eram virtuosos e felizes.
Contudo, embora ausente da literatura, a utopia não estava ausente do espírito dos homens; e a utopia dos primeiros mil e quinhentos anos depois de Cristo é transplantada para as alturas, e apelidada de «Reino dos Céus». É claramente uma utopia de escape. O mundo, aos olhos dos homens, está repleto de pecado e de problemas; não há nada a fazer, a não ser procurar o arrependimento e o refúgio na vida depois da morte. A utopia do cristianismo é, portanto, fixa e imutável: aquele a quem um passaporte tiver sido concedido poderá entrar no reino dos céus, mas nada pode fazer para criar ou moldar este paraíso. A mudança, o combate, a ambição e o progresso pertencem ao mundo do pecado, e não concedem a satisfação derradeira. A felicidade não reside na acção, mas em assegurar um saldo positivo no balanço final – a felicidade, por outras palavras, encontramo-la na indemnização final. Este mundo de impérios em desagregação e cidades delapidadas abriga apenas os violentos e os «mundanos».
Se durante este período a ideia de utopia perde o seu apelo prático, o desejo-de-utopia permanece; e o desenvolvimento do sistema monástico, bem como as tentativas de grandes papas, a partir de Hildebrando, no sentido de estabelecer um império universal sob o escudo da igreja demonstram que, como sempre, existia uma ruptura entre o que as pessoas pensavam e aquilo que as circunstâncias específicas e as instituições existentes as obrigavam a fazer. Não precisamos de dar atenção a estas utopias parciais e institucionais antes de chegarmos ao século XIX. O aspecto a realçar, agora, é que o reino dos céus, enquanto utopia de escape, não conseguiu manter a fidelidade dos homens, quando estes descobriram outros canais e possibilidades.
A transição de uma utopia celestial para uma utopia mundana ocorre durante esse período de transformação e de ansiedade que marcou o declínio da Idade Média. A sua primeira expressão é a Utopia de Thomas More, o grande ministro ao serviço de Henrique VIII."
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[1] Maximilian Harden, pseudónimo de Felix Ernst Witkowski (1861-1927), jornalista alemão.
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Actualização das editoras que integram o projecto de pré-publicações do Miniscente: A Esfera das Letras, Antígona, Ariadne, Bizâncio, Campo das Letras, Colibri, Guerra e Paz, Livro do Dia, Magna Editora, Magnólia, Mareantes, Publicações Europa-América, Quasi, Presença, Sextante Editora e Vercial.