segunda-feira, 11 de junho de 2007

Escavações Contemporâneas - 26


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O sorriso do arquivo no tempo da rede
(hoje: João Pereira Coutinho)
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"Retrato do filósofo quando jovem
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Isaiah Berlin é um dos mais relevantes intelectuais do século XX. A titulatura, hoje pacífica, nem sempre o foi. Na realidade, ao longo da vida de Berlin, e sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial, crescia entre a comunidade académica inglesa a ideia de que Berlin era um óptimo conversador - um prodigioso conversador - embora sem obra feita. Uma espécie de Sócrates dos tempos modernos, interessado em disputas intelectuais momentâneas mas sem uma preocupação teórica para as registar. A ideia, obviamente falaciosa, acabaria por ser derrotada por Henry Hardy, editor de Berlin, que na década de 70 mergulhou nos inéditos do autor e ofereceu ao mundo doze volumes de ensaios (até ao momento) - e, agora, o primeiro volume das cartas. Esperam-se mais dois. Esperam-me mais dois.
Intitulada Flourishing: Letters 1928-1946, a obra pretende cobrir os dezoito anos da juventude de Isaiah Berlin. E é, precisamente, com os dezoito anos do autor que Flourishing se inicia, apresentando uma carta de Berlin, então estudante na St. Paul's School, em Londres, ao escritor G.K. Chesterton, solicitando-lhe colaboração para um pequeno jornal escolar: «a poem or an essay or a story or an open letter», sugere o jovem plumitivo. Chesterton acabaria por responder e corresponder a tão irrecusável proposta. A obratermina quase duas décadas depois, com carta ao diplomata Averell Harriman. Pelo meio, encontramos uma juventude que, no essencial, seguiu o cursus honorum do intelectual inglês do pós-guerra, com o inevitável toque de excelência e sucesso: estudos no Corpus Christi College, em Oxford; eleição para o prestigiado All Souls (o primeiro judeu a ser eleito para Fellow da instituição); trabalho na embaixada britânica em Washington durante a Segunda Guerra Mundial; e a impressiva viagem à União Soviética no Outono de 1945, que aliás permitiu a edição, também este ano, de memorabilia vária (a este respeito, convém ler o recente The Russian Mind: Russian Culture Under Communism, uma edição de Henry Hardy para a Brookings Institution Press).
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Confrontados com o primeiro volume das cartas de Berlin, é possível tecer sobre o conjunto duas observações que, longe de se excluírem, constituem um necessário complemento.
A primeira delas - a mais imediata, a mais superficial, a mais repetidamente proferida nas críticas disponíveis - aponta para uma obra vincadamente pessoal, sem grande interesse académico para especialistas da obra do autor. Concordo parcialmente com esta visão, na medida em que o trabalho intelectual mais relevante de Berlin acabaria por surgir apenas depois da Segunda Guerra, período que será tratado no próximo volume. Numa leitura imediata, Flourishing é o retrato do filósofo quando jovem - e, como tal, testemunho das suas ambições e das suas humanas fragilidades. Encontramos as cartas aos pais, reveladoras de uma ligação imperecível e profunda, e onde o termo que dá título à obra - "flourishing" - é incessantemente repetido para descanso dos progenitores. Encontramos o gosto pela "pequena conversa" com amigos que, na verdade, durariam uma vida inteira (casos do poeta Stephen Spender; ou do filósofo Stuart Hampshire, falecido este ano). Encontramos a primeira viagem à Palestina em 1934. E, para o auditório lusitano, as cartas de Berlin relatam as estadias portuguesas do autor em Outubro de 1940 e em Janeiro do ano seguinte, oferecendo as suas impressões sobre os nativos (favoráveis); a leitura dos jornais portugueses (nenhum comentário); o contacto com os refugiados da Mitteleuropa que procuravam passagem para o outro lado do Atlântico; e as passeatas por uma Lisboa "gay and delightful". Neste sentido, o primeiro volume aparenta pouca relevância para gostos mais filosoficamente exigentes, excepto se estivermos interessados em confrontar a pobreza intelectual do nosso mundo com a riqueza de um tempo que ainda polvilhava cartas pessoais com expressões latinas (ou germânicas) que não precisavam de notas de rodapé.
Porém, e para lá da curiosidade pessoal, estes são anos formativos - anos que explicam muito das opções intelectuais posteriores que fariam de Berlin um dos mais profícuos ensaístas do século XX. É na juventude que se definem gostos intelectuais (e aversões intelectuais) - e a primeira metade da centúria, para Berlin, tem uma importância decisiva no rumo da segunda. Entre confidências pessoais e alguns ataques de hipocrondria (que seriam recorrentes ao longo da existência, conforme relata Michael Ignatieff na célebre biografia sobre o autor), encontramos também as primeiras leituras - e uma reacção às primeiras leituras. Encontramos o gosto por Malebranche; o entusiasmo (moderado) por Kant; e o trabalho sobre Karl Marx, que possibilitaria a Berlin a publicação de monografia em 1939 e, por arrastamento, um contacto apurado com os philosophes continentais que seriam decisivos na crítica berliniana ao monismo filosófico e à busca da "solução final". Mas encontramos mais. Encontramos já uma admiração profunda pela literatura russa: uma admiração por Turgenev e, sobretudo, Herzen - dois escritores que, em Russian Thinkers, quase quarenta anos depois, acabariam por conhecer tratamento sublime. E encontramos, ainda, reflexões pungentes sobre a sua própria condição como judeu entre os gentios: uma sensação de estranheza e de "uneasiness" que seria analisada, anos depois, no ensaio "Jewish Slavery and Emancipation", uma das mais vigorosas defesas do Estado de Israel e da importância do "lugar" como possibilidade de regresso e conciliação. Last but not least, convém lembrar que estas cartas foram escritas num tempo de horror: existe em todas elas uma dimensão moral manifesta e uma aversão completa por ideais alegadamente salvíficos e redentores, que exigem dos seres humanos o sacrifício das próprias vidas no "grande altar das abstracções".
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Uma palavra final para Henry Hardy, editor de Berlin e figura central na descoberta, ou redescoberta, deste autor. O cuidado editorial de Flourishing: Letters 1928-1946, se peca, peca apenas por excesso: tudo é detalhadamente explicado, comentado, confrontado, avaliado e comparado. E, como conclusão do volume, Hardy resolveu publicar (ou, em certos casos, republicar, como acontece com os "Dispatches from Washington") textos de Berlin que se consideravam esgotados, esquecidos ou perdidos. Todos eles apresentam interesse intelectual manifesto. Mas, se me permitem, gostaria de destacar um pequeno ensaio, escrito pelo jovem Isaiah aos dezoito anos. O texto, agraciado com um prémio escolar, intitula-se, tão simplesmente, "Freedom" - e constitui uma defesa (a primeira defesa?) de um conceito de liberdade clássica que, quatro décadas depois, conheceria tratamento definitivo no afamado "Two Concepts of Liberty". No fundo, talvez seja esta a lição principal deste primeiro e poderoso volume: é nos verdes anos que se preparam as colheitas dos tempos mais maduros."
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Segundas - João Pereira Coutinho
Terças - Fernando Ilharco
Quartas - Viriato Soromenho Marques
Quintas - Bragança de Miranda
Sextas - Paulo Tunhas
Sábados – António Quadros (António M. Ferro, Org.)