sexta-feira, 8 de junho de 2007

Escavações Contemporâneas - 24


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O sorriso do arquivo no tempo da rede
(hoje: Paulo Tunhas)
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Um inquérito de Verão*
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Crespim Afreixo Afluxo Estorninho, notório dirigente do PLSCR (Partido Liberal Socialista Conservador da Renovação), solicitou a este jornal uma entrevista, invocando «a extraordinária e nefanda campanha de obscurecimento a que o seu ideário rudemente tem sido submetido», bem como as «dúbias e inconfessáveis manipulações que a sua figura, de indiscutível recorte ético, sofre por parte dos órgãos de comunicação em geral e da imprensa escrita em particular». Nada mais nos restava senão dar a voz ao distinto político. Deslocamo-nos por isso à sua vivenda da Rua Afrânio Idêntico Estorninho (nome de seu avô, conspícuo democrata e celebrado autor de uma monografia dedicada ao tema «O imposto sobre os isqueiros em Portugal ao tempo do fascismo») e ouvimos as suas declarações.
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«Perguntem-me coisas sobre as minhas férias», disse, ao mesmo tempo que estendia o whisky sem gelo que lhe pedíramos. «Eu nem gosto dessa coisa», comentou, apontando o copo, «mas em política é preciso usar de tudo. Desde que nos limites da ética, porque a mim, como eu gosto de dizer, quem me tira a ética tira-me tudo!» E refastelou-se no maple. «Estes questionários sobre as férias são a melhor maneira de fazer passar a nossa mensagem. Já os sobre telenovelas são piores. É preciso decidir sobre os personagens e corre-se o risco de ofender alguém, que é uma coisa que não vai com o meu feitio. Hoje em dia os personagens são mais densos, mais complexos... Eu digo sempre que gosto, mas acrescento um: mas...» Sorriu, como quem pode ou não revelar um segredo. Revelou: «O «mas» serve sempre para mostrar que podiam ser mais educativas, mais formadoras. Um político ético tem que ter uma atenção especial à educação. Eu até já li duas páginas do Max Weber, quando me falaram em ser entrevistado para a televisão... Acabei por não ser... Invejas... Mas vamos lá às minhas férias!».
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«Senhor doutor, perguntamos primeiro, onde passa as suas férias?»
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«Em Portugal, sempre; e na companhia da minha família, sempre. Desde criança que passo as minhas férias em Portugal e na companhia da minha mulher e da minha filha. Foi sempre assim, e não vejo razão alguma para mudar de costumes. Não sou desses que gostam de andar sempre no estrangeiro. O que é que o estrangeiro tem que Portugal não tenha?, é o que eu pergunto sempre a esses senhores. E a família é muito importante. A ética e a família para mim são tudo. Quem me tira a ética e a família tira-me tudo, como eu costumo dizer».
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«E como é que o senhor doutor ocupa as suas férias?»
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«É lógico que as ocupe durante um mês, mais ou menos, como um cidadão normal. Mas de vez em quando dou uma saltadela à sede nacional do meu partido, para ver se ninguém me anda a querer lixar. Confesso humildemente que é a minha única angústia de férias. A minha mulher até me leva de vez em quando a mal. Diz: «São uns asnos, não te lixam!» Eu até acho que é verdade, mas fica-me o bichinho, por dentro, a roer...»
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«Mas lê?»
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«Leio. Tenho lido...»
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«O quê?»
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«Coisas responsáveis, sempre numa perspectiva ética. Por acaso até tive no outro dia a grata surpresa de saber que a Dra. Edite Estreia, uma senhora que é uma senhora, vai ler um livro que também já está na minha mala: A origem da obra de arte, daquele sociólogo russo, Heidegger. Eu preocupo-me muito com a arte. Sempre numa perspectiva ética, evidentemente. De resto, aconselho a sua leitura ao Dr. Mário Soares e ao Prof. Cavaco Silva. E os romances portugueses modernos. A mim quem me tira os romances portugueses modernos tira-me tudo, como eu costumo dizer. E não digo isto só por estar na moda. Desde 1960 que digo sempre a mesma coisa: quem me tira o meu João de Melo tira-me tudo!»
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«E filmes?»
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«Adoro vídeos. Levo o vídeo para onde quer que vá. Posso telefonar ao mesmo tempo que os vejo, o que no cinema, era uma chatice, não se podia fazer. Ainda ontem vi de enfiada o Citizen Kane, o Couraçado Potemkin e o Pátio das Cantigas — os meus três filmes preferidos —, enquanto telefonava ao Dr. Jaime Karsen, que é um gajo que eu nem conhecia do meu partido e que me anda a querer tramar. Mas quando vou ao cinema nunca saio a meio. Sou como a Dra. Edite Estrela, que é uma senhora que é uma senhora: nunca abandono nada que tenha entre mãos. Seria pouco ético. E nunca adormeço, também.»
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«E a praia, a areia e o mar, dizem-lhe alguma coisa?»
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«Então não dizem? É lógico que dizem. Mas dizem mais à minha filha e à minha mulher. Eu gosto sempre de ficar perto de um telefone. E Portugal — que eu amo, do ponto de vista ético, mais do que tudo — tem ainda muitas coisas de subdesenvolvimento. Por exemplo, não há telefones nas praias. A culpa, é claro, é do Governo, pouco esclarecido nestas matérias. Por isso, só por isso, eu gosto mais de piscinas. Sou como o Dr. Brederode. Mas a minha mulher e a minha filha dizem-me o que se passa na praia, e é como se eu estivesse lá. Ainda ontem estava um gajo do meu partido, que é também dirigente de um clube de futebol, a falar com um assessor do PR no toldo ao lado. Estava a querer tramar-me. Mas a minha mulher à noite contou-me e eu telefonei logo. Arranjei uma reunião especial na comissão dele: tem as férias lixadas.»
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«A solidão perturba-o?»
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«Não. De forma alguma. Nós, os políticos, temos de saber fazer frente à solidão. Mas é uma má-educação com a qual nunca transijo. Ficar sozinho é uma coisa muito egoísta. Levo sempre pelo menos quinze pessoas comigo. Sou um ser solidário, não solitário, como diz uma senhora que é uma senhora e que eu muito gostaria de ver no meu partido, porque é uma senhora que é uma senhora. Do ponto de vista ético, evidentemente.»
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«Senhor doutor, há ainda uma pergunta que gostaríamos de lhe fazer: onde é que, concretamente, passa as suas ferias?»
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O nosso entrevistado pareceu, por um momento, surpreendido com a pergunta. Olhou nervosamente para a enciclopédia dourada na majestosa estante à sua frente. O seu olhar devorador como que pressentiu todo o saber humano, num lance leve de homem hábil. Reflectiu. Levantou ambas as mãos pausadamente, olhando primeiro para o tecto e depois fitando-nos intensamente. Pronunciou: «Concretamente, é difícil. Mas vou ser sincero, porque a mim quem me tira a sinceridade tira-me tudo, como eu costumo dizer. Primeiro, tenho que ver para onde é que os outros vão. E para onde forem mais que sejam importantes, eu vou também. É uma espécie de dever. Não é por mim, percebe? — é pelo país. Eu não quero é que me tramem!»
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«Alguma mensagem final?»
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«Obrigado. Os portugueses são filhos da labuta. Precisam de férias. O meu partido garante—está já em estudo na comissão de que eu sou presidente — a extensão das férias para todos os filhos da labuta. É portanto urgente que votem em mim. Sou um filho da labuta como toda a gente, mas sou mais assumido do que toda a gente. A minha mulher e a minha filha apoiam-me. Não acreditem no Governo, não acreditem na outra oposição! Vamos fazer deste país um autêntico pais de filhos da labuta, mais filhos da labuta que os outros todos!»
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Crespim Afreixo Afluxo Estorninho, depois desta declaração final, pausou com solenidade satisfeita. Via-se que tinha conseguido fazer passar a sua mensagem. Levantamo-nos para sair. De repente pareceu nervoso. Agarrou-nos o braço. «Espere lá, há uma coisa que se esqueceu de perguntar, foi aquilo sobre música. É que eu gosto muito de música: Verdi, Pavaroti e essas coisas. E o Rui Veloso, também! É claro, é mais para a minha filha. Mas eu gosto muito do que a minha filha gosta. Já tenho o disco dele. Escrevam, por favor, que tenho o disco dele. Eu mando-o comprar, se for preciso! E o dos PSP também! Mas, pelo amor do Céu, digam que tenho o disco dele!»
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(O Primeiro de Janeiro, 19 de Agosto de 1990)
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Segundas - João Pereira Coutinho
Terças - Fernando Ilharco
Quartas - Viriato Soromenho Marques
Quintas - Bragança de Miranda
Sextas - Paulo Tunhas
Sábados – António Quadros (António M. Ferro, Org.)