Eduardo Pitta, CIDADE PROIBIDA, QuidNovi, Lisboa, 2007.
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[Primeiro Capítulo]
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"Nora sentiu o aperto no lado esquerdo da nuca. Agora acontecia com frequência. E não pôde deixar de pensar que tinha sido preciso chegar aos 50 anos para ficar dependente de inibidores de enzima. Olhou para o relógio e viu que tinha uma hora pela frente. O motorista vinha às oito. Largou o relatório, enterrou-se no sofá e semicerrou os olhos. Sabia-lhe bem estar ali, os braços perdidos na seda puída, com a luz de Abril coada pela buganvília. Afinal, comprara a casa por causa dela. Virada a poente, a parede envidraçada garantia devassa a todo o comprimento. Mas ela tinha apostado no avanço da trepadeira. O toldo listrado ainda lá estava mas já ninguém se lembrava dele. Acima de tudo, Nora gostava do instante em que o reflexo dourado das lombadas era toda a luz à sua volta. Nesse lapso de pura magia olhava a correnteza dos livros, o jarrão com as aráceas, o pé esguio do candeeiro de marfim que o pai trouxera da viagem a Moçambique, as molduras de prata com retratos da família e, no canto esquerdo, o brilho dos puxadores de latão das portadas viradas ao jardim. Tinha de fixar esse instante antes que desaparecesse. A escuridão engolia a sala num ápice, e mesmo a parede de vidro dava a ver os verdes a enegrecer. Era nesse preciso momento que Teddy (um smoke inglês de pêlo curto) se espreguiçava e partia. O gato tinha lugar cativo no cadeirão chippendale e nunca se refizera da partida de Martim, o filho de Nora. O mais que fez foi esperar três dias. Assim que intuiu o carácter definitivo da mudança, urinou sem complacência na porta do quarto do dono. Passava a ser o macho da casa. Foi nesse dia que Nora ouviu os berros. E o baque. Receando o pior, subiu as escadas com alvoroço. Percebeu tudo quando viu o rosto afogueado da criada e o rabo grosso de Teddy.
Não teve remédio.
— Vá arrumar as suas coisas, Isaura. Daqui a dez minutos deixo-lhe o cheque na cozinha. Não dê nunca o meu nome como referência, ver-me-ia obrigada a ser desagradável.
A rapariga não queria acreditar. Tartamudeou, bateu no avental, barafustou, rompeu a chorar. Chorava convulsivamente, a cara opada, feita um borrão vermelho. Nora achou repugnante de ver, mas foi inflexível. Isaura partiu a rosnar impropérios, ameaças veladas, o homem dela era ucraniano, e nunca se sabe, nunca se sabe do que um ucraniano de maus fígados é capaz. Teddy seguiu o melodrama à distância. A partir daquele dia ignorou os criados. Nunca mais voltou ao primeiro andar.
Martim vivia noutra casa há praticamente três anos. Os amigos da mãe achavam natural que um rapaz da sua idade, independente, que vivera seis anos em Inglaterra, escolhesse um canto seu. Volta não volta perguntavam por namoradas.
A parcimónia de Nora era lendária.
— Não faço ideia.
Dizia aquilo num tom que não admitia réplica.
A verdade é que lidava mal com o problema. Andaria o filho pelos 15 anos quando lhe disse que queria levar com ele o Tó nas férias do Carnaval. Ela achou bem. Eram amigos, andavam os dois nos Salesianos, e o Tó, embora arisco, seria bem recebido na casa da Curia. Tendo nascido ambos, Martim e o Tó, no mesmo dia e praticamente à mesma hora, o marido de Nora, num acesso de liberalismo, garantira ao Sequeira, o motorista, que os rapazes estudariam no mesmo colégio.
— Pago eu!
E honrou o compromisso até ao dia em que o Tó, então com 16 anos, desapareceu sem razão aparente da vida dos pais e da família Moncada.
O bilhete continuava lá em casa porque ela o tinha pedido ao motorista e não o devolveu:
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Não se ralem comigo. A vida que eu quero aí não dá. Salesianos, muito bacano, e depois? Recepcionista do Estoril-Sol à custa de cunha da família Moncada... Empregado no casino? Não quero. O pai dê um abraço ao senhor engenheiro. A mãe diga ao Martim que não me esqueço dele. Nunca. Ele percebe. Dou notícias. Beijos, Tó.
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Na tarde em que o leu, Nora gelou. Tinha gravada na memória a imagem de Martim na cama com o filho do motorista. A casa da Curia só tinha camas de casal, e as férias de Verão, tal como as do Carnaval e da Páscoa, impunham protocolos próprios. Embora fossem cinco, os quartos da casa não eram grandes. Anos houve em que o Grande Hotel foi uma extensão natural do núcleo familiar. Naquele dia, Nora julgava-os entretidos na vila. Seriam seis da tarde quando foi ao quarto à procura de uma revista extraviada. E então viu. Completamente nus, a dormirem profundamente, o radiador aceso em cima do tapete, muito próximo da cama, lençóis e cobertores atirados para trás, a perna esquerda do Tó atravessada nas costas do filho. Toda ela abanava, mas obrigou-se a olhar, a custo sustendo a respiração. Depois fechou a porta. À noite pretextou uma enxaqueca e pediu que lhe servissem o jantar no quarto. O marido nunca soube. Era preciso evitar confusões, perguntas embaraçosas, recriminações mútuas, os mexericos que um regresso intempestivo provocaria, sabe-se lá com que consequências para o motorista. Todos se interrogariam: o marido, os pais, os sogros, a irmã, os amigos, os outros empregados.
Quando as férias acabaram, tudo voltou à rotina. Nora desdobrou-se em estratégias para dificultar o convívio dos rapazes. Matriculou o filho no Instituto Italiano, impôs aulas de judo nas noites que sobravam e arranjou um explicador de matemática que só tinha vaga ao sábado à tarde e morava em Algés. Ao mesmo tempo que achava simpática a ideia do judo, o marido aprovou o cuidado com a matemática. A cultura italiana deixou-o indiferente.
— Esse explicador é mesmo bom? É o melhor? Não havia outro mais perto?
No dia seguinte pediu os contactos do professor do Passos Manuel.
— O Tó também vai. E para o judo também.
Nora não queria acreditar no que ouvia, sentia-se metida num pesadelo. Três vezes por semana eles iam e vinham do clube de judo sem que ela conseguisse mexer um dedo. Para a Rua do Salitre, ao menos para aí, Martim ia sozinho, mas nem por um momento lhe passou pela cabeça que o súbito interesse do filho pelo dolce stil nuovo pudesse ter alguma coisa a ver com os penetrantes argumentos do jovem mestre Carlo Sifreddi.
Uma noite, Martim chegou bastante mais tarde do que era costume.
— Estivemos a ver os frescos do primeiro andar. O Sifreddi tem a mania dos detalhes. Sabe tudo.
Curioso, Nora não se lembrava de ter visto frescos no palacete Braancamp Freire, mas também só lá fora ouvir conferências, não tinha sequer a certeza de conhecer o jardim.
No dia em que soube da fuga do Tó ficou sem saber o que pensar. Teve pena, sinceramente teve, do Sequeira e da Laurinda, atónitos, de olhar vazio, pendurados numa infinitude de perguntas sem resposta. Para ela, era pequeno consolo pensar que as coisas podiam mudar. Com efeito, não mudaram.
Naquele momento não sabia o que mais a incomodava, se o aperto na nuca ou a perspectiva do jantar. E o comprimido que não fazia efeito! Mas ainda tinha uma hora à sua frente."
"Nora sentiu o aperto no lado esquerdo da nuca. Agora acontecia com frequência. E não pôde deixar de pensar que tinha sido preciso chegar aos 50 anos para ficar dependente de inibidores de enzima. Olhou para o relógio e viu que tinha uma hora pela frente. O motorista vinha às oito. Largou o relatório, enterrou-se no sofá e semicerrou os olhos. Sabia-lhe bem estar ali, os braços perdidos na seda puída, com a luz de Abril coada pela buganvília. Afinal, comprara a casa por causa dela. Virada a poente, a parede envidraçada garantia devassa a todo o comprimento. Mas ela tinha apostado no avanço da trepadeira. O toldo listrado ainda lá estava mas já ninguém se lembrava dele. Acima de tudo, Nora gostava do instante em que o reflexo dourado das lombadas era toda a luz à sua volta. Nesse lapso de pura magia olhava a correnteza dos livros, o jarrão com as aráceas, o pé esguio do candeeiro de marfim que o pai trouxera da viagem a Moçambique, as molduras de prata com retratos da família e, no canto esquerdo, o brilho dos puxadores de latão das portadas viradas ao jardim. Tinha de fixar esse instante antes que desaparecesse. A escuridão engolia a sala num ápice, e mesmo a parede de vidro dava a ver os verdes a enegrecer. Era nesse preciso momento que Teddy (um smoke inglês de pêlo curto) se espreguiçava e partia. O gato tinha lugar cativo no cadeirão chippendale e nunca se refizera da partida de Martim, o filho de Nora. O mais que fez foi esperar três dias. Assim que intuiu o carácter definitivo da mudança, urinou sem complacência na porta do quarto do dono. Passava a ser o macho da casa. Foi nesse dia que Nora ouviu os berros. E o baque. Receando o pior, subiu as escadas com alvoroço. Percebeu tudo quando viu o rosto afogueado da criada e o rabo grosso de Teddy.
Não teve remédio.
— Vá arrumar as suas coisas, Isaura. Daqui a dez minutos deixo-lhe o cheque na cozinha. Não dê nunca o meu nome como referência, ver-me-ia obrigada a ser desagradável.
A rapariga não queria acreditar. Tartamudeou, bateu no avental, barafustou, rompeu a chorar. Chorava convulsivamente, a cara opada, feita um borrão vermelho. Nora achou repugnante de ver, mas foi inflexível. Isaura partiu a rosnar impropérios, ameaças veladas, o homem dela era ucraniano, e nunca se sabe, nunca se sabe do que um ucraniano de maus fígados é capaz. Teddy seguiu o melodrama à distância. A partir daquele dia ignorou os criados. Nunca mais voltou ao primeiro andar.
Martim vivia noutra casa há praticamente três anos. Os amigos da mãe achavam natural que um rapaz da sua idade, independente, que vivera seis anos em Inglaterra, escolhesse um canto seu. Volta não volta perguntavam por namoradas.
A parcimónia de Nora era lendária.
— Não faço ideia.
Dizia aquilo num tom que não admitia réplica.
A verdade é que lidava mal com o problema. Andaria o filho pelos 15 anos quando lhe disse que queria levar com ele o Tó nas férias do Carnaval. Ela achou bem. Eram amigos, andavam os dois nos Salesianos, e o Tó, embora arisco, seria bem recebido na casa da Curia. Tendo nascido ambos, Martim e o Tó, no mesmo dia e praticamente à mesma hora, o marido de Nora, num acesso de liberalismo, garantira ao Sequeira, o motorista, que os rapazes estudariam no mesmo colégio.
— Pago eu!
E honrou o compromisso até ao dia em que o Tó, então com 16 anos, desapareceu sem razão aparente da vida dos pais e da família Moncada.
O bilhete continuava lá em casa porque ela o tinha pedido ao motorista e não o devolveu:
e
Não se ralem comigo. A vida que eu quero aí não dá. Salesianos, muito bacano, e depois? Recepcionista do Estoril-Sol à custa de cunha da família Moncada... Empregado no casino? Não quero. O pai dê um abraço ao senhor engenheiro. A mãe diga ao Martim que não me esqueço dele. Nunca. Ele percebe. Dou notícias. Beijos, Tó.
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Na tarde em que o leu, Nora gelou. Tinha gravada na memória a imagem de Martim na cama com o filho do motorista. A casa da Curia só tinha camas de casal, e as férias de Verão, tal como as do Carnaval e da Páscoa, impunham protocolos próprios. Embora fossem cinco, os quartos da casa não eram grandes. Anos houve em que o Grande Hotel foi uma extensão natural do núcleo familiar. Naquele dia, Nora julgava-os entretidos na vila. Seriam seis da tarde quando foi ao quarto à procura de uma revista extraviada. E então viu. Completamente nus, a dormirem profundamente, o radiador aceso em cima do tapete, muito próximo da cama, lençóis e cobertores atirados para trás, a perna esquerda do Tó atravessada nas costas do filho. Toda ela abanava, mas obrigou-se a olhar, a custo sustendo a respiração. Depois fechou a porta. À noite pretextou uma enxaqueca e pediu que lhe servissem o jantar no quarto. O marido nunca soube. Era preciso evitar confusões, perguntas embaraçosas, recriminações mútuas, os mexericos que um regresso intempestivo provocaria, sabe-se lá com que consequências para o motorista. Todos se interrogariam: o marido, os pais, os sogros, a irmã, os amigos, os outros empregados.
Quando as férias acabaram, tudo voltou à rotina. Nora desdobrou-se em estratégias para dificultar o convívio dos rapazes. Matriculou o filho no Instituto Italiano, impôs aulas de judo nas noites que sobravam e arranjou um explicador de matemática que só tinha vaga ao sábado à tarde e morava em Algés. Ao mesmo tempo que achava simpática a ideia do judo, o marido aprovou o cuidado com a matemática. A cultura italiana deixou-o indiferente.
— Esse explicador é mesmo bom? É o melhor? Não havia outro mais perto?
No dia seguinte pediu os contactos do professor do Passos Manuel.
— O Tó também vai. E para o judo também.
Nora não queria acreditar no que ouvia, sentia-se metida num pesadelo. Três vezes por semana eles iam e vinham do clube de judo sem que ela conseguisse mexer um dedo. Para a Rua do Salitre, ao menos para aí, Martim ia sozinho, mas nem por um momento lhe passou pela cabeça que o súbito interesse do filho pelo dolce stil nuovo pudesse ter alguma coisa a ver com os penetrantes argumentos do jovem mestre Carlo Sifreddi.
Uma noite, Martim chegou bastante mais tarde do que era costume.
— Estivemos a ver os frescos do primeiro andar. O Sifreddi tem a mania dos detalhes. Sabe tudo.
Curioso, Nora não se lembrava de ter visto frescos no palacete Braancamp Freire, mas também só lá fora ouvir conferências, não tinha sequer a certeza de conhecer o jardim.
No dia em que soube da fuga do Tó ficou sem saber o que pensar. Teve pena, sinceramente teve, do Sequeira e da Laurinda, atónitos, de olhar vazio, pendurados numa infinitude de perguntas sem resposta. Para ela, era pequeno consolo pensar que as coisas podiam mudar. Com efeito, não mudaram.
Naquele momento não sabia o que mais a incomodava, se o aperto na nuca ou a perspectiva do jantar. E o comprimido que não fazia efeito! Mas ainda tinha uma hora à sua frente."
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