VANITAS
51, AVENUE D´IÉNA
por Almeida Faria
51, AVENUE D´IÉNA
por Almeida Faria
e
15
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(último episódio)
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Entrei a seguir na livraria, onde folheei e comprei o livro do Herbert. Decidido a flanar sem destino, demorei-me diante do Deux Magots observando um jongleur de boulevard disfarçado de explorador, com binóculos e chapéu colonial, que ora fingia buscar ao longe um oásis e escrevinhava num diário de viagem, ora desdobrava um mapa em cima do tejadilho dos automóveis que paravam no semáforo e que, quando o sinal verde voltava, desatavam a buzinar porque o funâmbulo não arredava pé nem dava mostras de deixar de analisar o mapa. O público da esplanada ria desocupado e, no fim do espectáculo, pagava recebendo em troca uma foto do falso ou verdadeiro aventureiro que a carimbava nas costas, assim autenticando a sua efígie de celebridade do género fugaz.
Para não ter que me dobrar a meter-me num táxi, vim de metro até à avenue Kléber e apeei-me na estação em frente ao Majestic. Virei à avenue des Portugais e, pela rue Jean Giraudoux, depressa desemboquei na avenue d'Iéna. Chegando ao número cinquenta e um, a minha falta de confiança na técnica fez-me pensar com pavor no código da porta. Sem nenhuma lógica receei o pior, ainda que o fecho funcionasse afinal sem problemas. Os problemas vieram mais tarde, depois de me despir e, em calções de pijama por causa do calor, me deitar em cima da cama lendo o livro recém-comprado.
Terei sido desviado do meu dia tranquilo pelo estudo acerca de Torrentius, de cuja vida se sabe mais que dos seus quadros? Há descrições de alguns deles, embora, por muito que se somem substantivos e adjectivos e todo o arsenal dos dicionários, jamais as palavras nos tragam o que num instante a mente recebe da imagem. Este Torrentius terá sido rosa-cruz, perjuro e debochado, um S. João Baptista do Marquês de Sade, acusado e perseguido, preso, torturado e destruído pelo puritanismo calvinista. Natureza-Morta com Brida, o seu único quadro conhecido ou sobrevivo, provável alegoria da temperança, da áurea mediocridade e do domínio sobre os instintos – tudo o que lhe faltou em vida –, está em Amsterdão no Rijksmuseum. Existe algum elo oculto entre a tormentosa vida de Torrentius e os acontecimentos que me levaram à presença do antigo proprietário desta casa? Alguém, além de mim, o viu no terceiro andar?
Ou conteria a assiette Nobel um desses filtros mágicos que provocam fantasias e nos desaparafusam o juízo? E as noites de hoje, de amanhã e depois, como serão? Se ouvir passos, ponho tampões nos ouvidos e não ligo. O truque serviu para resistir às sereias de Ulisses; também funcionará contra um fantasma. Terão os astros enviado o reconstrutor desta casa só para me forçar a meditar sobre a vanitas inerente a toda a arte? Se ao menos a série dos meus desenhos se equilibrasse entre a justa medida dos mestres – a brida de Van de Beeck – e a liberdade sem açaimo, o pensamento sem mordaça, a rédea solta, a desmedida! Mas não estou seguro disso e desespero até do título: As Lágrimas de Eros soa-me a patético. Agora é tarde. O pior é que arrefeci lá em cima e nem dois soníferos me põem a dormir. Não há meio de aquecer, o que é muito bem feito – para aprender a não andar em tronco nu num palacete destes.
Entrei a seguir na livraria, onde folheei e comprei o livro do Herbert. Decidido a flanar sem destino, demorei-me diante do Deux Magots observando um jongleur de boulevard disfarçado de explorador, com binóculos e chapéu colonial, que ora fingia buscar ao longe um oásis e escrevinhava num diário de viagem, ora desdobrava um mapa em cima do tejadilho dos automóveis que paravam no semáforo e que, quando o sinal verde voltava, desatavam a buzinar porque o funâmbulo não arredava pé nem dava mostras de deixar de analisar o mapa. O público da esplanada ria desocupado e, no fim do espectáculo, pagava recebendo em troca uma foto do falso ou verdadeiro aventureiro que a carimbava nas costas, assim autenticando a sua efígie de celebridade do género fugaz.
Para não ter que me dobrar a meter-me num táxi, vim de metro até à avenue Kléber e apeei-me na estação em frente ao Majestic. Virei à avenue des Portugais e, pela rue Jean Giraudoux, depressa desemboquei na avenue d'Iéna. Chegando ao número cinquenta e um, a minha falta de confiança na técnica fez-me pensar com pavor no código da porta. Sem nenhuma lógica receei o pior, ainda que o fecho funcionasse afinal sem problemas. Os problemas vieram mais tarde, depois de me despir e, em calções de pijama por causa do calor, me deitar em cima da cama lendo o livro recém-comprado.
Terei sido desviado do meu dia tranquilo pelo estudo acerca de Torrentius, de cuja vida se sabe mais que dos seus quadros? Há descrições de alguns deles, embora, por muito que se somem substantivos e adjectivos e todo o arsenal dos dicionários, jamais as palavras nos tragam o que num instante a mente recebe da imagem. Este Torrentius terá sido rosa-cruz, perjuro e debochado, um S. João Baptista do Marquês de Sade, acusado e perseguido, preso, torturado e destruído pelo puritanismo calvinista. Natureza-Morta com Brida, o seu único quadro conhecido ou sobrevivo, provável alegoria da temperança, da áurea mediocridade e do domínio sobre os instintos – tudo o que lhe faltou em vida –, está em Amsterdão no Rijksmuseum. Existe algum elo oculto entre a tormentosa vida de Torrentius e os acontecimentos que me levaram à presença do antigo proprietário desta casa? Alguém, além de mim, o viu no terceiro andar?
Ou conteria a assiette Nobel um desses filtros mágicos que provocam fantasias e nos desaparafusam o juízo? E as noites de hoje, de amanhã e depois, como serão? Se ouvir passos, ponho tampões nos ouvidos e não ligo. O truque serviu para resistir às sereias de Ulisses; também funcionará contra um fantasma. Terão os astros enviado o reconstrutor desta casa só para me forçar a meditar sobre a vanitas inerente a toda a arte? Se ao menos a série dos meus desenhos se equilibrasse entre a justa medida dos mestres – a brida de Van de Beeck – e a liberdade sem açaimo, o pensamento sem mordaça, a rédea solta, a desmedida! Mas não estou seguro disso e desespero até do título: As Lágrimas de Eros soa-me a patético. Agora é tarde. O pior é que arrefeci lá em cima e nem dois soníferos me põem a dormir. Não há meio de aquecer, o que é muito bem feito – para aprender a não andar em tronco nu num palacete destes.
e
FIM
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