VANITAS
51, AVENUE D´IÉNA
por Almeida Faria
51, AVENUE D´IÉNA
por Almeida Faria
e
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(penúltimo episódio)
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«Talvez esteja a aborrecê-lo. Se a arquitectura dos negócios não é o seu forte, daqui a pouco adormece sentado. Antes que isso aconteça, agradeço a sua benevolência. Amanhã serei eu a escutá-lo. É pouco falador? Contar-lhe-ei então como funciona a alegada eternidade, onde tudo se passa em esferas infinitas cujos centros estão em todo o lado e cujos perímetros, que nas circunferências se chamam comprimentos, não estão em lado nenhum. São esferas de matéria transparente, girando num perfeito isolamento em tudo oposto à vossa barulheira contínua. Esferas não tão afastadas da Terra e barreiras não tão intransponíveis quanto o presumem os vivos. Nós, sombras de sombras, andamos muito perto das vossas existências meteóricas. Mas basta, desculpe se me alonguei. Obrigado por hoje. Boa noite.»
Não me estendeu a mão, cujo contacto não seria dos mais cálidos. Fechei a porta monumental e, às escuras no átrio, a minha perturbação era tal que não encontrei o interruptor iluminado. Avançando na penumbra, desci a escadaria a custo. No segundo piso as lâmpadas ficaram acesas, ou por prática da casa ou só por minha causa, e foi-me fácil alcançar o meu quarto. Numa ingratidão indesculpável, após o luxo do terceiro andar achei um tanto serviçal este quarto de criada, apesar de renovado e com banho privativo. Os dedos tremiam-me, os dentes batiam-me enquanto me fechava à chave. Perdido o nexo na cadeia dos factos, passei em revista o dia sem perceber em que momento o real descarrilara. Ter-me-ia o reino do entendimento abandonado quando deixei o Museu d'Orsay? Fui ao Café des Lettres, cinquenta e três rue de Verneuil, experimentar uma assiette Nobel à base de salmão, arenque e tosta Skagen coberta de camarões com molho de aneto ou luzendro, e trouxe a ementa para servir de amuleto a um amigo que, na sua vaidade das vaidades, todos os anos anseia receber o cheque e a glória desse prémio.
«Talvez esteja a aborrecê-lo. Se a arquitectura dos negócios não é o seu forte, daqui a pouco adormece sentado. Antes que isso aconteça, agradeço a sua benevolência. Amanhã serei eu a escutá-lo. É pouco falador? Contar-lhe-ei então como funciona a alegada eternidade, onde tudo se passa em esferas infinitas cujos centros estão em todo o lado e cujos perímetros, que nas circunferências se chamam comprimentos, não estão em lado nenhum. São esferas de matéria transparente, girando num perfeito isolamento em tudo oposto à vossa barulheira contínua. Esferas não tão afastadas da Terra e barreiras não tão intransponíveis quanto o presumem os vivos. Nós, sombras de sombras, andamos muito perto das vossas existências meteóricas. Mas basta, desculpe se me alonguei. Obrigado por hoje. Boa noite.»
Não me estendeu a mão, cujo contacto não seria dos mais cálidos. Fechei a porta monumental e, às escuras no átrio, a minha perturbação era tal que não encontrei o interruptor iluminado. Avançando na penumbra, desci a escadaria a custo. No segundo piso as lâmpadas ficaram acesas, ou por prática da casa ou só por minha causa, e foi-me fácil alcançar o meu quarto. Numa ingratidão indesculpável, após o luxo do terceiro andar achei um tanto serviçal este quarto de criada, apesar de renovado e com banho privativo. Os dedos tremiam-me, os dentes batiam-me enquanto me fechava à chave. Perdido o nexo na cadeia dos factos, passei em revista o dia sem perceber em que momento o real descarrilara. Ter-me-ia o reino do entendimento abandonado quando deixei o Museu d'Orsay? Fui ao Café des Lettres, cinquenta e três rue de Verneuil, experimentar uma assiette Nobel à base de salmão, arenque e tosta Skagen coberta de camarões com molho de aneto ou luzendro, e trouxe a ementa para servir de amuleto a um amigo que, na sua vaidade das vaidades, todos os anos anseia receber o cheque e a glória desse prémio.
e
(continua)
(continua)
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Próximo episódio: “O público da esplanada ria desocupado e, no fim do espectáculo, pagava recebendo em troca uma foto do falso ou verdadeiro aventureiro que a carimbava nas costas, assim autenticando a sua efígie de celebridade do género fugaz.”
Próximo episódio: “O público da esplanada ria desocupado e, no fim do espectáculo, pagava recebendo em troca uma foto do falso ou verdadeiro aventureiro que a carimbava nas costas, assim autenticando a sua efígie de celebridade do género fugaz.”