segunda-feira, 7 de maio de 2007

Escavações Contemporâneas - 4


LC
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O sorriso do arquivo no tempo da rede
(hoje: João Pereira Coutinho*)
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Os terroristas de Conrad
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"O dr. Theodore Dalrymple tem razão. Aliás, o dr. Dalrymple tem sempre razão – mas existem momentos em que até um sábio exagera. Aqui há umas semanas, e a propósito do último livro de John Updike, The Terrorist, Dalrymple aplaudia a obra em artigo no City Journal mas notava que existe obra melhor para entender a cabeça de um fanático. E citava Joseph Conrad. E citava The Secret Agent.
Eu li The Secret Agent numa altura de certa inocência política e até moral. Vivia-se a queda do Muro, o optimismo do fim da história. E o 11 de Setembro ainda pairava longe. A obra de Conrad era um policial negro sobre um atentado falhado, um crime conjugal e um suicídio inesperado. Tudo muito convencional. Então o livro ficou a dormitar na estante e quando voltava a Conrad, voltava às obras filosoficamente maiores. Como Heart of Darkness, uma machadada eloquente nas certezas virtuosas da «fé» iluminista. Ou como The Shadow-Line, novela aparentemente menor sobre a linha imperceptível que cruzamos na viagem pessoal rumo à maturidade.
Por causa de Dalrymple, e da obra de Updike, regressei a The Secret Agent. Soprei o pó. Li. Reli. E fui anotando, página a página, a presciência assustadora do autor, que em 1906 escrevia sobre o mundo de 2006.
Enredo: Adolf Verloc (curioso nome: Adolf) é casado com Winnie, mais nova e mais inocente do que ele. O casal vive por cima de uma loja esquálida numa rua esquálida de Londres, na companhia da mãe de Winnie e do irmão de Winnie, Stevie, um adolescente retardado (não é pleonasmo; o rapaz é clinicamente retardado). E se todas as famílias infelizes são infelizes à sua maneira, a infelicidade que Verloc trará para dentro de portas será, literalmente, o seu próprio fim: ao recrutar Stevie, o adolescente (e um inocente), para um atentado terrorista ao Observatório de Greenwich, Verloc destrói o último elo que o ligava à humanidade. Destrói e destrói-se aos olhos de Winnie.
A obra de Conrad está historicamente correcta. Em 1894, uma tentativa falhada ao Observatório era um sinal de que as actividades anarquistas e terroristas seriam um problema sério para o futuro da Europa. Conrad percebeu o sinal e, como sempre acontece, recebeu assobios fartos dos seus contemporâneos mais optimistas. A obra era «demasiado sórdida para ser trágica e demasiado repulsiva para ser patética», escreveu-se. Em cartas ou diários, o próprio autor questionava seriamente se a publicação do livro fora um gesto sensato. Estas dúvidas acabariam por cessar poucos anos depois: quando um membro da espécie assassinava o arquiduque Franz Ferdinand em Sarajevo. A Europa mergulhava, e mergulhava euforicamente, na matança das trincheiras.
Ler The Secret Agent, no eterno retorno de hoje, é revisitar a mais brilhante visão sobre a mentalidade de um terrorista. Dalrymple sublinha a essência dessa mentalidade: o tédio existencial profundo de quem recusa participar na vida, no seu incerto cortejo de vitórias ou fracassos e nas exigências de disciplina, sacrifício ou sentido moral que a define. Concordo, sim; concordo e cito: «ele era uma vítima da descrença filosófica em qualquer tipo de esforço humano», escreve Conrad sobre Verloc. É o niilismo de Verloc que o convida à violência: como se houvesse na violência uma promessa de redenção. E não deixa de ser singular como o «ennui» venenoso e destrutivo de Verloc também se encontra nos terroristas que Conrad prenunciou. Lawrence Wright, no recente The Looming Power: Al Qaeda’s Road to 9/11, é primoroso ao explicar a atracção do jihadismo para jovens muçulmanos, sobretudo sauditas, que encontram em versões radicais do Islão uma fuga ao puritanismo tradicional do credo doméstico. Exactamente como Verloc, filho de um pregador cristão e radical, «um homem superiormente confiante nos privilégios das suas certezas». A melhor forma de derrotar o dogma é pela criação de um dogma que o derrote.
E a violência? Dirige-se a quem, ou a quê? Nos terroristas de Conrad, dirige-se aos símbolos maiores do seu tempo. «O fetiche de hoje não está na realeza ou na religião», afirma um dos comparsas de Verloc. «O fetiche de hoje está na ciência». Matar um rei ou um presidente é um acto convencional. Atacar uma igreja pode ser confundido com uma atitude espiritual. O radicalismo do terror deve atacar aquilo que os contemporâneos mais prezam. Na Inglaterra eduardiana de Conrad, a ciência era a manifestação suprema do progresso. Cem anos depois, o que mais prezamos é a normalidade «burguesa», alguns dirão «capitalista», das nossas vidas urbanas. Torres de negócios onde fazemos negócios. Transportes públicos onde nos deslocamos em público. Habitualmente.
Os terroristas de Conrad regressaram sob novas roupagens. E a única forma de entender a besta é saber do que a besta gasta. Conrad sabia. Sabia que os herdeiros da «fé» iluminista estavam errados ao acreditar que os homens matam porque a corrupção da sociedade os obriga a isso. E sabia também que a ignorância ou a pobreza não explicam a escolha pelo mal – uma escolha tantas vezes consciente e autónoma. Ouvir o coração das trevas é regressar à natureza prévia onde ele bate. E a única natureza que interessa, ontem como hoje, é a humana."