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O sorriso do arquivo no tempo da rede
(hoje: Paulo Tunhas*)
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O QUE É O HORROR?
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"A televisão deixou-nos ver, no outro dia, um espectáculo dos mais sinistros que se possa conceber. Tinha aquela carga suplementar de horror que deriva da absoluta previsibilidade e transmitia uma sensação parecida com a da mistura de irrealidade e cruel verosimilhança que se tem quando alguém se parodia a si mesmo. Era demasiado ficcional para ser real e era simultaneamente demasiado real para ser ficcionável. Era uma terrível mentira verdadeira. Daquelas que fazem desaparecer o mundo por momentos às almas que apesar de tudo crêem numa espécie de afinidade entre os seres e não são escuteiras, quer dizer: não têm a irritante mania que o mundo existe sempre e que elas são extremamente necessárias a essa existência. Essas estão sempre bem e têm uma confiança que não é má-educação chamar cretina na infinita bondade universal do que lhes parece natural.
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O espectáculo consistia na confirmação pelo Conselho de Estado de Cuba, presidido por Fidel de Castro, da sentença de morte do general Ochoa e de mais três oficiais, condenados, parece, por tráfico de droga. Como infelizmente não parece impossível que seres que confundem a inefabilidade da sua inconsciência com a pedra-de-toque da verdade existam, talvez valha a pena explicar porque é que para um vulgar ser humano aquele espectáculo deveria ter provocado uma reacção de horror. Mas sem dúvida que é rigorosamente inútil procurar fazer, mesmo que vagamente, compreender quanto a questão da verdade ou falsidade da acusação é neste caso por inteiro espúria.
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Comecemos pela cena. Fidel de Castro falava ao Conselho de Estado, umas vinte pessoas. Exibia as suas penas pessoais pelo facto em si e pela condenação de Ochoa, antigo herói da revolução. O Supremo Tribunal Militar já ratificara a pena capital ditada pelo Tribunal Especial Militar. Tratava-se agora da decisão final. Fidel falava com emoção. Dava a entender que a sua decisão era um sacrifício. O príncipe, mesmo o príncipe de uma revolução, tem que obedecer à lei. Não falava pelo seu coração (o seu coração batia por um antigo amigo), falava por uma obrigação maior — o bem do povo e da revolução, a justiça popular — que habitava nele e a que ele se dedicava. Mesmo que lhe ferisse o coração. Falava, em última análise, contra si. O seu voto de confirmação da pena de morte — cuja abolição os comunistas entre nós devem achar uma vitória da liberdade, e não é preciso dizer mais — partia-lhe o coração. E contra o seu coração, em primeiro lugar, votou. O voto dos outros a seguir veio. E, por unanimidade, foi concordante com o voto de Fidel.
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Esta história edificante de um sacrifício revolucionário é, a todos os títulos, exemplar — e na sua exemplaridade reside discretamente o seu horror. É exemplar, em primeiro lugar, porque é inteiramente previsível. Toda a gente sabia que se iria passar assim. Os ímpetos perestroikos ainda não chegaram a Cuba e os modelos seguidos são os das tiranias de ideologia altruísta (de que o comunismo é, perdoe-se o optimismo, o modelo acabado). Por isso não há novidade para o espectáculo.
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É exemplar, em segundo lugar, porque é já uma paródia de si mesmo. É a repetição de uma história antiga, o que o comunismo, mais do que qualquer outro sistema, tem tendência a exibir, confirmando, por uma vez, uma previsão de Marx. Daí o lado quase cómico de tudo isto — ou inteiramente cómico para quem não sentir o horror da morte ou a puder justificar. Há descrições fiáveis, feitas por autores divulgados, das encenações que Estaline e os seus amigos faziam em privado das últimas declarações das vítimas dos processos de Moscovo. Mas o problema é que a tragédia, repetindo-se, continua tragédia. O cómico, se se quiser, é a consequência histérica da irrealidade aparente dos factos. É uma defesa. E uma defesa do cinismo. Não é inteiramente perdoável, mesmo que olhar de frente a tragédia seja insustentável.
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É exemplar, em terceiro lugar, porque é uma mentira verdadeira que faz perder o mundo. Quer dizer, é uma traição ao mundo. Há crimes que degradam o valor do mundo. Expresso numa linguagem egoísta, isto significa que há actos que fazem perder a sensação de continuidade do Eu com o mundo. Certamente haverá almas que o negarão: terão os resquícios de uma ciência do mundo que lhes pemitirá restabelecer a continuidade. É coisa de escuteiros progressistas e é uma mentira verdadeira porque simultaneamente inconcebível e previsível e real.
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É exemplar em quarto e último lugar porque provoca o silêncio. Os confiantes cretinos na bondade do que se educaram a pensar como natural perdoam tudo. E perdoam tudo porque nunca lhes passou pela cabeça aquilo que Santo Agostinho uma vez escreveu: que a piedade é coisa diferente da pura e simples abstenção do mal. Não sabem, singelamente, o que é horror."
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O espectáculo consistia na confirmação pelo Conselho de Estado de Cuba, presidido por Fidel de Castro, da sentença de morte do general Ochoa e de mais três oficiais, condenados, parece, por tráfico de droga. Como infelizmente não parece impossível que seres que confundem a inefabilidade da sua inconsciência com a pedra-de-toque da verdade existam, talvez valha a pena explicar porque é que para um vulgar ser humano aquele espectáculo deveria ter provocado uma reacção de horror. Mas sem dúvida que é rigorosamente inútil procurar fazer, mesmo que vagamente, compreender quanto a questão da verdade ou falsidade da acusação é neste caso por inteiro espúria.
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Comecemos pela cena. Fidel de Castro falava ao Conselho de Estado, umas vinte pessoas. Exibia as suas penas pessoais pelo facto em si e pela condenação de Ochoa, antigo herói da revolução. O Supremo Tribunal Militar já ratificara a pena capital ditada pelo Tribunal Especial Militar. Tratava-se agora da decisão final. Fidel falava com emoção. Dava a entender que a sua decisão era um sacrifício. O príncipe, mesmo o príncipe de uma revolução, tem que obedecer à lei. Não falava pelo seu coração (o seu coração batia por um antigo amigo), falava por uma obrigação maior — o bem do povo e da revolução, a justiça popular — que habitava nele e a que ele se dedicava. Mesmo que lhe ferisse o coração. Falava, em última análise, contra si. O seu voto de confirmação da pena de morte — cuja abolição os comunistas entre nós devem achar uma vitória da liberdade, e não é preciso dizer mais — partia-lhe o coração. E contra o seu coração, em primeiro lugar, votou. O voto dos outros a seguir veio. E, por unanimidade, foi concordante com o voto de Fidel.
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Esta história edificante de um sacrifício revolucionário é, a todos os títulos, exemplar — e na sua exemplaridade reside discretamente o seu horror. É exemplar, em primeiro lugar, porque é inteiramente previsível. Toda a gente sabia que se iria passar assim. Os ímpetos perestroikos ainda não chegaram a Cuba e os modelos seguidos são os das tiranias de ideologia altruísta (de que o comunismo é, perdoe-se o optimismo, o modelo acabado). Por isso não há novidade para o espectáculo.
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É exemplar, em segundo lugar, porque é já uma paródia de si mesmo. É a repetição de uma história antiga, o que o comunismo, mais do que qualquer outro sistema, tem tendência a exibir, confirmando, por uma vez, uma previsão de Marx. Daí o lado quase cómico de tudo isto — ou inteiramente cómico para quem não sentir o horror da morte ou a puder justificar. Há descrições fiáveis, feitas por autores divulgados, das encenações que Estaline e os seus amigos faziam em privado das últimas declarações das vítimas dos processos de Moscovo. Mas o problema é que a tragédia, repetindo-se, continua tragédia. O cómico, se se quiser, é a consequência histérica da irrealidade aparente dos factos. É uma defesa. E uma defesa do cinismo. Não é inteiramente perdoável, mesmo que olhar de frente a tragédia seja insustentável.
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É exemplar, em terceiro lugar, porque é uma mentira verdadeira que faz perder o mundo. Quer dizer, é uma traição ao mundo. Há crimes que degradam o valor do mundo. Expresso numa linguagem egoísta, isto significa que há actos que fazem perder a sensação de continuidade do Eu com o mundo. Certamente haverá almas que o negarão: terão os resquícios de uma ciência do mundo que lhes pemitirá restabelecer a continuidade. É coisa de escuteiros progressistas e é uma mentira verdadeira porque simultaneamente inconcebível e previsível e real.
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É exemplar em quarto e último lugar porque provoca o silêncio. Os confiantes cretinos na bondade do que se educaram a pensar como natural perdoam tudo. E perdoam tudo porque nunca lhes passou pela cabeça aquilo que Santo Agostinho uma vez escreveu: que a piedade é coisa diferente da pura e simples abstenção do mal. Não sabem, singelamente, o que é horror."
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*O Primeiro de Janeiro, 19 de Julho de 1989