segunda-feira, 30 de abril de 2007

Escavações Contemporâneas - 1


LCA
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O sorriso do arquivo no tempo da rede
(hoje: João Pereira Coutinho*)
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"Leio na imprensa da manhã que as gravatas estão em declínio. Em 1996, e só em Inglaterra, 70% dos trabalhadores usavam gravata nas horas de ofício. Dez anos depois, a coisa desceu para 56% e, nas «profissões liberais», foi a deserção total. Os vendedores fazem contas à vida e perguntam se vale a pena. Os especialistas da sociologia e da história dizem que não vale a pena. As gravatas foram perdendo relevância pela sua evidente inutilidade.
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Curioso raciocínio. Eu julgava que a evidente inutilidade das gravatas era o principal motivo para as usarmos. Até Luis XIV, que praticamente iniciou o fenómeno, percebeu o facto: ao contemplar os lenços que os mercenários croatas transportavam ao pescoço depois da vitória sobre os turcos, o monarca agradeceu a ideia e resolveu adaptar um adereço bélico, capaz de proporcionar protecção e conforto nas noites de campanha, aos salões de Versalhes. Utilidade? Nenhuma. Inutilidade? Toda. A inutilidade própria de quem entende a estética como prolongamento natural da nossa mortalidade.
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Concordo com o velho Luis. Concordo e por mim falo: no dia em que percebi que não precisava de usar gravata, comprei a primeira. Foi amor à primeira vista: castanha, de lã, numa loja do centro. O passo inaugural de uma colecção que já ascende às duzentas. Alguns dirão que é traço de família. O meu avô, o homem mais elegante que conheci em toda a minha vida, juntou umas mil e tal até ao fim. Lã. Seda. Malha. De todas as cores e feitios. Compradas aqui e acolá. Por respeitabilidade social? Talvez. Mas, no seu caso, desconfio que as usava por respeitabilidade pessoal. Ele podia não precisar de usar, porque a certa altura passou simplesmente a trabalhar no escritório, em casa. Mas não usar gravata era como não usar cuecas por baixo das calças. Possível, em teoria. Desconfortável, na prática.
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Comigo, não. Uso-as pela evidente inutilidade que as define. Porque as gravatas são uma celebração da inutilidade. São uma forma de dizermos: sim, eu sei que isto não passa de um trapo colorido sem nenhum valor utilitário. Mas o mundo que habitamos, quando despido de qualquer coloração humana, também não passa de uma evidência física incapaz de transportar qualquer sentido, ou beleza, ou eternidade. Os quadros que amamos são uma mistela de tintas sobre linho: um amontoado de átomos sem nenhuma expressão humana particular. Mas quando os vemos com um olhar grato e deslumbrado, a evidência da tinta desaparece por trás de deuses ou heróis que tomam literalmente conta do quadro. Um traço de tinta é agora um braço; a folhagem perdida de uma vista; o nevoeiro que vem e tudo cobre. E o que ficam são histórias e mais histórias: de como Vénus nasceu das águas. De como Deus tocou no dedo dos Homens e lhes deu vida e imortalidade. De como a névoa chegou a Veneza e tudo cobriu de tristeza e melancolia. Sim, Veneza: aquele amontoado de casas. De pedras, cimento, tijolo. De becos, canais e ruelas, para usarmos a descrição científica, e cientificamente rigorosa, que horrorizava Proust com a força de uma blasfémia. Mas Veneza é também lugar, e memória. E o que anteriormente eram pedras e ruelas, são agora locais de passagem e de regresso.
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Mesmo o rosto da pessoa que amamos será uma colecção de tecidos animados por um batimento cardíaco que começa e acaba sem ninguém saber como, ou porquê. Mas o rosto da pessoa que amamos é tudo menos isso: é a promessa de que a nossa solidão é testemunhada e embalada pela simples presença daquele rosto. Os livros de anatomia estão certos. Os livros de anatomia estão completamente errados.
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As gravatas são pedaços de tecido. Mas são mais do que tecido: são uma extensão inútil da nossa preciosa singularidade. Uma forma de sermos vaidosos, pirosos. Modernos, antiquados. Excessivos, reservados. E, no final do dia, quando desfazemos o nó das nossas vidas, sabermos sempre que, também por isso, somos simplesmente humanos."
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Crónica publicada na Revista Atlântico