sexta-feira, 30 de junho de 2006

Aviso do final de Junho

O "tom" dos blogues acabou ontem (no número 46).
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Esta reflexão e outras sobre a blogosfera continuarão, muito em breve, no semanário Expresso.
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O Miniscente vai voltar a ser o que sempre foi, desde 15 de Julho de 2003 até ao final de Abril deste ano, altura em que se iniciou a publicação de "O 'tom' dos blogues".

quinta-feira, 29 de junho de 2006

O "tom" dos blogues - 46

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Os blogues criam todos os dias milhões de conteúdos que percorrem o jogo de espelhos do novo labirinto da rede. Nas conectividades que a estendem para fora e para dentro de si, os discursos fluem através de links, de pontes entre excertos, de partilhas entre dados e, em termos mais gerais, através da propagação metonímica de escritas variadíssimas que recobrem a comunidade (cada vez mais globalizada). A expressão da blogosfera é ainda uma tentativa de ocupação de um espaço, embora à ideia de descoberta de um novo território se sobreponha quase sempre a ilusória convicção de um dial-up automático e normalíssimo (tais são os efeitos da instantaneidade). É como se os navegadores de quinhentos chegassem a novos continentes e se exprimissem, depois, como se nada tivesse acontecido: mera conectividade. Esta neutralização da aventura expressiva (e da posse dos seus objectos) que está ‘em curso’ é típica da revolução pacífica que os blogues protagonizam nos nossos dias (só mentes tão inquinadas quanto criteriosas, caso de Clara Ferreira Alves, podem ver no novo medium um refúgio para "desempregados", "ociosos" e "rancorosos"*).
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Os média tradicionais, de modo diverso do que acontece com o discurso publicitário e com as “RP” em geral, tudo fazem, ainda que involuntariamente, para preservar um tipo de representação baseada sobretudo no fechamento (relação estrita entre fontes variadas e impressão) e, por isso, dissociado do imaginário da rede. A própria extensão dos média tradicionais aos meios “on-line” confirma essa tendência conservadora, na medida em que os conteúdos aí agenciados dispensam geralmente os “links” e acabam por assumir-se como atributos, marcas indexicais ou simples “suplementos” do suporte em papel.
Poderão alguns cair na tentação de ‘denunciar’ estes factos projectando nos média tradicionais um 'dever ser' que não é o da sua genuína codificação. De qualquer modo, imaginar que os jornalistas pudessem agir como os “bloggers” agem, ou seja, de um modo aberto e multimodal no coração da rede, seria, de algum modo, imaginar a morte da própria ideia (moderna) de jornalista. Imaginá-lo pressuporia um nivelamento da iniciativa diária e profissional dos jornalistas com os mais anónimos nós que constituem a rede. Imaginá-lo pressuporia uma menor visibilidade do seu próprio juízo deontológico e, portanto, da auto-referencialidade activa que lhes é particularmente inerente. Imaginá-lo pressuporia uma menor presunção do seu papel de tradutores exclusivos das meta-ocorrências (que constroem mundo) perante o grande público.
Exigir aos jornalistas uma natureza que não é a sua é legítimo, mas talvez não seja tão profícuo quanto se possa crer. No fundo, a verdade é que a comunicação não é apenas um vínculo estrito dos jornalistas (é esse o pensamento falacioso dos muitos jornalistas que são euforicamente chamados às escolas de comunicação para os estágios práticos de fim de curso). A própria – e recente – tradição da epistemologia comunicacional o demonstra, já que as saídas práticas desses estudos apontam, para além do clássico jornalismo, para o multimédia, para as relações públicas, para o marketing, para a investigação e para outras dimensões variáveis que colocam em evidência a proximidade entre a cultura material, o design e os novos mitos hipertecnológicos do globário.
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A comunicação está, pois, muito para além do jornalismo e seria um erro imputar-lhe uma espécie de pesada mono-referencialidade (daí que palavras, como as de Clara Ferreira Alves, não tenham qualquer importância). Se existe alguma ética e algum 'dever ser' na comunicação contemporânea, ela não é com toda a certeza uma anfitriã exclusiva e sedentária das redacções dos jornais. É o que estamos, também, no dia a dia, a aprender humildemente nos blogues, essa bacteriologia espalhada na rede que tem adaptado e desenvolvido as suas capacidades expressivas a um devir não apenas jornalístico da comunicação. Daí, também, a sua virtude e a sua imensa riqueza potencial.
A conquista de um “tom” específico, ou seja, a reinvenção de linguagens e elocuções no novo território da rede, é, hoje em dia, um novíssimo laboratório
comunicacional onde – ao contrário dos média tradicionais - os blogues se tornaram personagens essenciais (experimentais) e globais.
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*Publicado pela cronista no Diário Digital e referenciado no desdobrável da Casa Fernando Pessoa que convoca o público para uma discussão sobre este mesmo tema a ter lugar hoje, pelas às 21h. 30 (com a presença de Eduardo Prado Coelho - que "não lê blogues" -, Fernanda Câncio, Pedro Mexia e a moderação habitual de Carlos Vaz Marques). Antes do debate, Vasco Santos da editora Fenda falará dos livros que gostaria de ter editado no último mês e Maria Antónia Oliveira tentará responder à seguinte questão: Alexandre O'Neill, se fosse vivo, teria um blogue?

quarta-feira, 28 de junho de 2006

O "tom" dos blogues - 45

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No início dos anos oitenta, Richard Rorty afirmou: “há pessoas que escrevem como se só existissem textos”. Na blogosfera, fora talvez das vagas mais especializadas, esta tendência virtualizante apenas se acentuou. O mundo das escritas que se desdobram em escritas e das imagens que se desdobram em imagens tornou-se cada vez mais numa espécie de barómetro expressivo.
Ao navegar-se na rede, os sites e os blogues sucedem-se e a leitura, não estando fixa em lado nenhum, desloca-se sem aquele rumo que sempre nos habituou ao cumprimento de princípios, de fins, de direcções, de metas e de sentidos monopolizáveis. Ao contrário de uma possível História da Leitura Moderna, o texto subitamente mergulha no texto e dá-se a ver como uma auto-referência que avança em caminhos diferentes ao mesmo tempo (como se a sua montagem escapasse ao teor tradicional da manipulação griffithiana).
De um momento para o outro (uma década, hoje em dia, é um segundo), tal como em alguma arquitectura nórdica onde o encaixe dos materiais gera a robustez das linhas de força, também nesta escrita o sentido parece resultar mais do ímpeto com que o texto força e penetra no plano de outros textos e nas agendas que vai partilhando.
Aliás, neste movimento (nesta navegação), a escrita e a leitura parecem fundir-se como se dois filmes que se vissem frente a frente (ecrã face a ecrã), se misturassem e se projectassem caleidoscopicamente em todas as direcções.
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Há uma constante no modo como a escrita e a leitura blogosféricas traduzem esta intimidade com que os nós da rede se observam e interpenetram. Essa constante consiste na maior importância atribuída ao “quem” do que ao “quê” que emerge nos blogues (o que não acontece nos livros onde o enunciado tende a sobrepor-se quase sempre às enunciações, devido ao fôlego da narrativa tradicional). E isto apesar de o “quem” dos blogues corresponder quase sempre a um “eu” ficcional, cuja amplitude é ambígua: do intimismo confessional à tergiversação doméstica, do imediatismo crítico à crónica aforística, da locução apologética à proclamação solitária (longe de mim pretender categorizar!).
No rápido, persistente e ininterrupto dialogismo que faz dos blogues uma máquina agilíssima de vasos comunicantes, cada novo blogue que surge faz-se quase sempre acompanhar por uma atitude telegráfica que é menos apresentação do que explicação de si próprio. Trata-se de um ter que dizer “o quê” (de que se ocupa, ao que vem...) que “me faz ser assim como sou” (ou seja, que aponta para o sujeito empírico e ficcional que passo a ser - "o quem"). Como se um muro tivesse que explicar a forma que o faz ser muro. Como se um “quê” tivesse que se transformar subitamente num “quem” para poder aceder às regras do clube. É por isso que um blogue é sempre muito mais o blogue de “A” do que o blogue que versa “Y”.
Este facto, que releva a supremacia da individuação no novo meio, é afinal contíguo à citada máxima de Rorty. Como se o cenário da blogosfera tivesse voltado a emancipar todo o tipo de personagens, mas com um único propósito: escreverem e confundirem-se com os seus textos como se só existissem textos. Como se a leitura e a escrita se tivessem tornado de vez nesse novo filme sem fim (feito de filmes e de filmes de filmes) onde cada personagem - cada mónada - se move como se fizesse parte, realmente, de uma "segunda humanidade".

terça-feira, 27 de junho de 2006

O "tom" dos blogues - 44

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Uns dias após o Natal de 1919, Marcel Duchamp comprou numa farmácia de Le Havre um frasco de vidro. Com a cumplicidade do farmacêutico, desfez-se do líquido que o frasco continha e voltou a fechá-lo hermeticamente. Uma semana mais tarde, já em Nova Iorque, Marcel Duchamp deu a “obra de arte” à família que o alojou e baptizou-a com o singelo nome de “Ar de Paris”. Quando, vinte anos depois, este mesmo frasco - já então parte da Colecção Arensberg - foi aberto de forma involuntária, outro destino não o aguardava senão atravessar o Atlântico para receber em Le Havre - e na mesma farmácia - um novo ar e uma nova tampa. Claro que o nome da “obra de arte” se manteve incólume: “Ar de Paris”.
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Agora que se reatou o tema dos predecessores dos blogues (ou da retrodicção criada pela blogosfera), este exemplo evocado por Sloterdijk num recente livro sobre o terrorismo*, aproxima-nos doutra dimensão actual dos blogues que não deixa igualmente de ter os seus óbvios antecessores. No exemplo, à parte a consideração artística, canonizada e ‘datada’ do ready-made, o interessante é que o facto de nomear prevalece - sem quaisquer ironias - sobre a força do verosímil (de tal modo que uma falha na encenação plástica da “obra” obrigá-la-ia a atravessar o Atlântico, no delicado ano de 1939, apenas para se encher de “ar de Paris”… em Le Havre), independentemente da relativa virtualização atribuída ao “ar”, ao objecto e à locução.
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De facto, quando Duchamp se entendeu com o farmacêutico de Le Havre, naquele dia 27 de Dezembro de 1919, o frasco subitamente tornou-se num objecto com uma nova significação. O mesmo se poderá dizer da imaginação associada ao “ar” nele contido e ao jogo de linguagem que passou a denotá-lo e a conotá-lo (“Ar de Paris”). De certo modo, transpondo esta metamorfose significativa para a arena dos nossos dias, poder-se-ia dizer que o frasco passou a metaforizar uma espécie de hardware, que o ar teria passado a metaforizar o que geralmente se traduz por ‘éter da rede’ (a imaterialidade dos novos circuitos) e que as designações - “Paris”, “ar”, “de” – teriam passado a metaforizar as linguagens que ciclopicamente a atravessam.
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Levando mais longe este paralelismo, de que Marcel Duchamp podia ser o epónimo: ao blogar, em plena cibernavegação, mais não se faz do que sucessivamente retirar e fixar a tampa ao paródico frasco de Marcel Duchamp. O ar desse frasco ter-se-ia generalizado, dando origem a numa novíssima atmosfera que já não habita nem dentro nem fora do frasco, que já não é nem imaginária nem real, e que já não é nem relíquia estética nem obra incomum (dir-se-á que se passou a confundir com o próprio espaço da rede – essa informe globário de ‘hosts’ e ‘routers’ feericamente ligados entre si).
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A atitude performativa de Marcel Duchamp já semeava este propósito vivido hoje em dia na blogosfera: designar, dizer, referir ou preencher o espaço do ‘post’, em primeiro lugar, e ancorá-lo a um dado verosímil apenas depois. Não é, com efeito, a relação ‘verdade-não verdade’ que persegue o actual fascínio da leitura e da escrita na blogosfera, mas sim o ímpeto e o contraste entre os sentidos que vão sendo criados. Numa esfera profundamente auto-referencial onde os contextos são rápidos e estão imersos na enunciação ‘post a post’, aquilo que, no tempo de Marcel Duchamp, foi um gesto “criativo” e singular é hoje um dado pragmático, ou um elementar denominador comum da novíssima navegação.

segunda-feira, 26 de junho de 2006

O "tom" dos blogues - 43

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A arquitectura telemática da rede (a cenografia flutuante onde também surge em cena a blogosfera) é muitas vezes entendida como determinante face ao que nela se move (a informação) e sobretudo face àquilo que é a própria rede aos olhos dos novos navegadores virtuais (a rede é um fenómeno que se objectiva naqueles que a agenciam).
Para estes novos internautas, a rede é sobretudo um agregado de procedimentos, de travessias rápidas e de conteúdos fugidios que visa algo, ou seja, que denota uma intencionalidade qualquer a que os próprios não são de modo nenhum alheios. A questão tem a sua raiz em Husserl: a consciência é sempre a consciência de qualquer coisa, na medida em que uma representação é inevitavelmente um acontecimento de cada agente, de cada pessoa, de cada blogger. O que se representa - a ideia de rede e o que ela visa - representa-se sempre a partir de um corpo onde se criam imagens que vão fazendo aparecer a consciência (a mente é um fluxo de imagens que faz aparecer a consciência).
A consciência do blogger - criada por sequências variadas e intensas de imagens também virtuais - está assim permanentemente a imergir nos circuitos da rede e a reinventar-se em situações que se desdobram e que (mutuamente) se iludem ou intertextualizam: a experiência da rede é tanto mais uma experiência do corpo e da mente quanto mais as simulações nela criadas se abrem a novos espaços e a novas séries de remissões. O corpo do blogger que se projecta na rede é, nesta medida, um corpo que se transforma numa viagem, num tele-rumo em cascata. As finalidades e os leitmotivs surgem nessa navegação como meios, os limites - a pele - como passagens entre zonas permeáveis e o olhar como propriocepção alargada.
Tradicionalmente, a propriocepção sempre se traduziu por uma consciência dos limites do corpo físico. Só que, neste caso, o corpo internauta passou a exceder de longe essa noção de corpo físico que permanece sentado a observar o ecrã onde o blogue se torna visível através de intermitências electrónicas. Esse lugar que se dá a ver através do ecrã do monitor e onde aparecem imagens e pré-escritas é, ele mesmo, o mostrar de uma consciência que está, ao contrário da consciência real, ligada clinicamente a uma soma indeterminada de muitíssimas outras consciências. Este misto cruzado de consciências em articulação com uma propriocepção aparentemenmte sem fim define o corpo protético do blogger.
É um corpo que parece crescer até aos confins não-lineares da rede. Uma massa de carne telepática cuja consciência excede fatal e desmesuradamente a consciência individual, já que é regulada por imagens de imagens que se propagam de maneira indefinida e duradoura.
O corpo protético do blogger pode ser decisivo para o entendimento da questão do “tom”, essa incessante procura que tem em vista adequar a expressão – baseada em sistemas clássicos - ao novíssimo medium (tudo isto se passa nos últimos segundos da história da espécie humana). Se o corpo protético do blogger decorre de uma forte vivência virtual e se a consciência do blogger é a fábrica plural de imagens originada por essa vivência, é natural que a sua expressão na rede (nos blogues) tente salvaguardar aquilo que é o seu espaço vital e a preservação mínima da sua identidade. Sobretudo porque a mobilidade da consciência (coligada a muitas consciências, como se viu) tende a diluir as fronteiras do espaço singular e pessoal. É por esse motivo que a apropriação do meio e das linguagens que o blogger domina terá que depender de uma fixação identitária mínima, cuo objectivo é separar o que é o espaço da sua própria escrita da voragem intertextual que a rede processa e consome.
Esta ‘luta’ em duas frentes é a mesma que Damásio ilustrou para caracterizar a construção da consciência: de um lado, o engendramento contínuo de imagens (incluam-se aqui também os padrões neurais e os mapas) para que a mente expresse o que se passa na relação entre organismo e ambiente; do outro lado, a experiência do “sentido si” que implica a certeza de que esses acontecimentos correspondem a experiências desse organismo real e não de um outro qualquer.
A expressão, ou, repita-se, a adequação dos sistemas comunicacionais tradicionais à nova arquitectura telepática que constitui a rede, será sempre uma batalha sustentada nestas dois campos: o campo da euforia (onde se inclui a novidade proprioceptiva e uma nova consciência plural e partilhada constituída por uma bola de neve de imagens) e o campo subjectivo (onde se tornam inevitáveis o apelo da individualização, a recusa da imersão patológica, a criação de uma intencionalidade e a normalização mínima das escritas).

domingo, 25 de junho de 2006

Dominicais e intempestivas (act.)

Bloggers anónimos numa rua escura de Alcântara, na sequência da visita do ilustre Alexandre Soares Silva a Lisboa (flagrante após a sobremesa)
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Hoje, como é habitual, é dia de descanso para os "Tons". Para quem já se cansou e para quem já se rendeu, há uma novidade: eles acabarão no número cinquenta (tal como a série "Ficcionalidades de Prata" que publiquei há dois anos).
Daqui a duas semanas, sensivelmente, o Miniscente comemorará o seu terceiro aniversário e, nessa altura, far-se-ão outros balanços.
Consegui até agora nunca falar de futebol, talvez porque, pela primeira vez na minha vida, senti um ligeiro cansaço (não com o jogo, mas com o espasmo generalizado que obriga a fazer de cada corpo um corpo da selecção). No futebol, prefiro sempre o futebol de equipa: é aí que a physis se expõe e que o coração, decididamente, se entrega. Isto não quer dizer que hoje não torça por Portugal, embora tenha ambas as nacionalidades (portuguesa e holandesa). Cantarei os dois hinos, pois então.
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p.s. (no intervalo) - No comentário político está sempre a acontecer aquilo que deu há pouco ao Costinha.
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p.s. (no final) - Talvez o empate tivesse sido mais justo. Mas a estranha ausência de fairplay por parte dos holandeses ditou a justiça do vencedor.

sábado, 24 de junho de 2006

O "tom" dos blogues - 42

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É ponto assente que a blogosfera se transformou num território de regresso à individuação, num tempo que parecia não mais permiti-lo (a noção de ‘autor’ vinha a perder-se ao longo do século passado – entre tendências formalistas e hermenêuticas - e ameaçava diluir-se na frieza das conectividades da rede). Esta afirmação da individualidade é um dos aspectos que mais tenho perseguido e analisado nesta série acerca do modo como a expressão se tem reinventado no novo medium.
No coração destas análises, há uma questão que inevitavelmente não deixará nunca de ser postulada: que tipo de subjectividade e de individuação é esta? Há um ponto de partida que parece ser óbvio para as mais variadas respostas: na actualidade, a circulação de todo o tipo de informação adquiriu uma autonomia tão radical na rede que se afastou de vez daquilo que seriam os seus personagens ‘naturais’ (empíricos, ficcionais, interactores, etc.).
Hoje em dia, já não se pode dizer que o agir humano e o agir autónomo das linguagens interajam de modo flexível e aberto no mundo. Será mais prudente afirmar-se que a autonomia das linguagens (essa miríade de entidades semióticas veiculadas em bits) está a criar um novo tipo de agir humano. De um sincretismo entre linguagem e acção estamos a passar para uma virtualização que pressupõe uma acção e uma linguagem paralelas ao vivido. De um lado, o corpo de carne e osso face ao computador, do outro lado um corpo em delírio virtualizante que se adapta e confunde com a voragem dos dados suscitados pela instantaneidade da rede.
Cuiosamente, quando a Declaração de Leiner e Cerf foi tornada pública, a meados dos anos setenta, o protocolo que viria a criar rede (TCP/IP) tal como hoje a entendemos, baseava-se já na lógica do ‘end-to-end’. Isto é – como este último escreveria mais tarde -: “A única coisa que queríamos era que os bits fossem transportados através das redes, apenas isso”. A compreensão telemática do corpo passaria a pressupor precisamente este facto: a informação, ao ganhar uma tal independência, deixaria definitivamente de se relacionar com os corpos que a agenciariam, com os dados (conteúdos) agenciados e com os próprios objectos a que se referiria. Um novo entendimento do mundo estava assim a emergir.
É neste quadro que a disponibilidade do novo caudal de informação (que circula no mundo paralelo ao mundo territorial) acaba por traduzir-se numa espécie de eficácia de excesso que se contrapõe à ideia clássica de individualidade, de subjectividade e de corpo. O que apreendemos, hoje em dia, é sempre um excerto, uma panóplia de fragmentos, um ‘zapping’ desse novo mundo de bits (i.e., um outro desígnio para o que aprendemos a entender por montagem). Daí que o novo corpo e a nova subjectividade – que se revelam nos blogues de modo primoroso – assumam as características de um corpo e de uma subjectividade protéticos: neles, a realidade é uma plasticina criada pela ‘re-arrumação’ permanente de bits. A maior angústia do blogger - e do que ele enuncia e apreende - decorre do desfasamento entre aquilo que decifra e o fluxo a que acede em cada momento: é nessa décalage que a virtualização da individualidade (a prótese) age e reage aos próprios contextos que cria.
Este novo interface entre a máquina hipertecnológica e a subjectividade acabará, mais cedo ou mais tarde, por reflectir-se na nossa própria arquitectura genética. Hoje em dia, já se formulam questões acerca desta transição entre uma sociabilidade massificada e a súbita sociabilidade das mediações hipertecnológicas. O pós-humano - um campo do saber muito recente – vive deste emaranhado onde estão envolvidas a neurobiologia, as teorias da rede e as ciências comunicacionais, semióticas e cognitivas.
Quem sabe se a individuação que se revelou subitamente na blogosfera não constituirá - ou não constitui já – um laboratório quase ideal para encontrar algumas das respostas para tais fascinantes perguntas?

sexta-feira, 23 de junho de 2006

O "tom" dos blogues - 41 (act.)

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A interrupção do coito é um método clássico de precaução que nunca impediu um vasto campo de possibilidades, mesmo as mais inesperadas ou desejadas. A expectativa de interromper um coito sempre coincidiu com um horizonte fluido que tendia a diluir-se no frémito do prazer, na tentação ad aeternum do acto e na entrega ao ilimitado. É por isso que a interrupção do coito sempre navegou, e há-de navegar, na incerteza do que, ao mesmo tempo, ‘é’ e ‘não é’. A partir dele, ou da intenção de realizá-lo, tudo pode irremediavelmente acontecer. O que o sustém é o que o alimenta e o que o prefigura é o que o trai.
O coito interrompido é, pois, uma partilha tácita que pode, a qualquer momento, tornar-se no pasmo mais maravilhado da volúpia: uma rendição deslumbrada.
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A interrupção da leitura tem hoje em dia na rede um destino semelhante à interrupção do coito. As coisas ligam-se quase cutaneamente. Não tanto pelo facto de a instantaneidade da rede poder sugerir – e sugere certamente - formas de desejo protéticas, mas sobretudo porque a rede é, ela mesma, uma amálgama de interrupções permanentes, devido às remissões que conduzem, segundo a segundo, aos links mais diversificados.
Os destinos criados pela omnipresença dos links são incomensuráveis face à via - ou ‘estrada clássica’ - que sempre fez da leitura uma travessia calma que, quando muito, acautelaria a existência de um ou doutro cruzamento ou viaduto.
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Nos dias da rede, cada segmento de uma via (ou de uma estrada) é já - e sempre - um desdobrável quase ilimitado de seduções que nos aparece diante dos olhos sob a forma de índices variados, de ícones atraentes, ou de simples mudanças cromáticas (a palavra azulada acenando na frase negra).
Este banho de imersão faz do corpo do blogger que imergiu na rede um corpo que é quase só feito da água que o envolve: como se se tivesse dissolvido na matéria que transformou as vias - e as estradas clássicas – na mais pura volúpia. Como se todos os caminhos se tivessem extinguido e, em sua substituição, aparecessem agora vórtices doces onde se está em todo o lado e ao mesmo tempo.
Afinal, não há melhor metáfora para um orgasmo quase perfeito: essa perda de lugar, de horizonte, de expectativa e de consciência de interrupção. ‘Estar lá’ como explicação e ‘ficar lá' como devir: é tudo. Tudo para explicar um bom orgasmo, ou para situar a perdição do actual sujeito protético que está a fazer da rede a obsessão mais eufórica da sua individualidade.
Há descobertas que são simples: soam ao que somos, ao que fazemos e ao que – substancialmente - fantasiamos.
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p.s. - Remando quase ao mesmo tempo e na mesma direcção: publica-se hoje no Abrupto um segundo - e óptimo - texto sobre a natureza retrodita dos blogues (o verbo "retrodizer" foi utilizado por Borges para caracterizar o papel de Kafka como pioneiro de muitos dos seus antepassados - Otras Inquisiciones, Kafka y sus precursores, 1952). Lembro-me deste tipo de análise ter atravessado os blogues há uns dois anos.

quinta-feira, 22 de junho de 2006

O "tom" dos blogues - 40 (ver p.s.)

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Talvez a estratégia dos conteúdos que se agenciam nos blogues seja idêntica à que Gide atribuiu um dia ao diabo: a de fazer crer a sua própria inexistência. É verdade que a invisibilidade do que ‘se diz’ nos blogues é directamente proporcional à sua transitoriedade, ou seja: o que é retido do que se lê na blogosfera, passado um ou dois dias, é já tão pouco ao pé do que é removido que o ‘quase nada’ que sobra acaba por ter um poder demiúrgico sobre a própria obsessão do interactor (como se fosse o vestígio de um meio ‘iluminado’). Esta assimetria terá a crueldade de um exorcismo incompleto, mas é ela que cultiva o novo tipo de narrativa diária que, de modo síncrono e plural, a blogosfera passou a impor ao quotidiano nos últimos anos. Ela surge com novos ângulos e pontos de vista e cruza-se, de um modo provocador e externalista, com as narrativas mais ou menos estáveis que já lhe pré-existiam.
Em De Profundis, Óscar Wilde disse (“dizer” é próprio do género epistolográfico, como é o caso) que o principal valor da paixão de Cristo era estético e que o próprio triunfo do Cristianismo no Ocidente se ficava a dever mais a esse factor estético do que a qualquer outro paradigma moral. Segundo este ponto de visita, a paixão de Cristo teria superado a dimensão das tragédias gregas e inscrevia todas as possibilidades do mundo numa dramaturgia simples, superior e exemplar.
Se se fizer corresponder este visionarismo estético de Wilde (assente ainda na ideia de ‘beleza’) ao visionarismo local que o blogger tem hoje da rede em geral (o ‘todo’ dos blogues, ou, noutra escala, o ‘todo’ em expansão do universo da rede), pode dizer-se que a nova narrativa blogosférica se está, a pouco a pouco, a impor às narrativas previamente existentes, não por dar a ver todas as possibilidades do mundo através de uma dramaturgia superior e exemplar, mas por reflectir a redescoberta da subjectividade a contracenar com o novo acting-out mediático da rede. Daí o carácter provocador e activo da nova narrativa (de narrativas) que, dia a dia, o hibridismo expressivo da blogosfera passou a catapultar, apesar da aparente invisibilidade dos seus conteúdos e (par cause) do poder desmesurado da arena telemática onde circula.
Em 1766, no capítulo IX de Laocoonte, Lessing escrevia: “Apenas quis nomear como obras de arte aquelas em que o artista se podia manifestar enquanto tal”. Este eco que revelava a súbita descoberta da subjectividade num campo que subitamente se autonomizava – o estético (o que aconteceu a meados do Século XVIII, através de autores como Baumgarten, Diderot ou Winckelmann) – parece ter algo a ver com a hipnose encantada do blogger contemporâneo face à deslumbrada propagação da sua voz no novo éter da rede. Como se o fervor de todas as novas e súbitas revelações, fosse qual fosse a sua natureza – a de Wilde, a de Lessing ou a dos actuais “early adopters” (D. Watts) - se fizesse acompanhar por uma dimensão estética capaz de converter num segundo os mais incautos.
Eis, pois, mais uma explicação tão clara quanto óbvia para a euforia que acompanha, nos tempos que correm, todos os agentes da santíssima trindade da blogosfera: simultaneamente autores, editores e leitores compulsivos. Sem esquecer que a visibilidade dessa euforia tem ainda hoje em Gide um dos seus profetas.
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p.s. - Hoje, às 18 h. 30, Alexandre Soares Silva, vindo directamente do Brasil em figuração carne-e-osso, ostentará a sua erudição e outros devaneios espirituais em plena Casa Fernando Pessoa, aqui no bairro de Campo de Ourique. Estarei lá, como conspirador vestido de linho claro, mas não só.
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quarta-feira, 21 de junho de 2006

O "tom" dos blogues - 39

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Um breve texto deixado na caixa de comentários de “O ‘tom’ dos blogues – 30” (da autoria de Roteia do Ultra Periférico) suscitava respostas às seguintes perguntas alternativas: Que espaço existiria há alguns anos que, hoje em dia, os blogues tenham passado a ocupar? Ou, será que um espaço 'totalmente novo' se veio apenas acrescentar aos já existentes?
Eu creio que a blogosfera veio maioritariamente responder a horizontes anteriormente existentes, embora tenha também alargado o horizonte com que nos debatemos e exprimimos hoje em dia (daí as contendas enuncidas pelo
Roteia entre os tempos destinados ao blogue e os outros tempos ‘úteis’ destinados, por exemplo, à escrita, à investigação, à leitura, etc.).
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Comecemos pelo primeiro caso. A blogosfera veio de facto ocupar:
a) o que antes era um espaço de silêncio que se desenvolvia de modo vertical entre alguns emissores localizados e uma vasta cadeia de auditórios (o tempo de incubação e interpretação de um livro, de um filme, de textos publicitários, do discurso político, etc. que hoje aparece a cruzar a meteórica miscelânea temática dos blogues);
b) o que antes era um espaço potencial de interacção que vivia contido pela própria natureza dos média tradicionais (a reacção face à televisão, face aos espaços de crónica ou face à própria sintaxe das notícias/imagens que hoje preenchem boa parte dos discursos activos e plurais que se enunciam nos blogues);
c) o que antes constituia um espaço crítico a partir do qual se descreviam coloquialmente – era ‘matéria de botequim’ - certos mundos de cariz muito empírico (as viagens, os lazeres domésticos, os pequenos actos do quotidiano que hoje aparecem intensamente transpostos em conteúdos da blogosfera).
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Passemos ao segundo caso. A blogosfera veio também realmente acrescentar horizonte aos nossos horizontes, sobretudo pelo facto de ter aberto a possibilidade de existência ao que, hoje em dia, pode ser já caracterizado como sendo a ‘cidadania expressiva’ (um imenso jorro “telepático” global, segundo a expressão de Sloterdijk, que carece ainda de uma adequação das linguagens tradicionais às ‘estruturas’ do novo meio).
Este novo redimensionamento dos horizontes expressivos corresponde a um espaço potencial que anteriormente não estava a ser desenvolvido por diversas razões, sendo as principais (a) o controlo apertado dos mecanismos de edição e (b) o desfasamento entre o desejo de inciativa expressiva e os meios que a tornassem massificadamente possível.
A ideia (ingenuamente blogosférica) que, de repente, tudo e todos se tornaram “escritores” ou “autores” advém desta ‘ruptura’ operada na rigidez dos mecanismos de edição e na eficácia expressiva proporcionada pelos “hosts” (Blogger, etc.).
Há, contudo, uma interessante analogia entre este caudal de novas escritas e “escritores” (o número de blogues não deixa de crescer de modo exponencial) e o final da censura que, no caso português de há trinta e dois anos, toda a inteligentsia pensou que viria acompanhado do anúncio de um número ímpar de obras de qualidade até então ofuscadas do público. Se hoje se sabe que este último facto se traduziu afinal no verdadeiro mito de Abril de 1974 (pondo de lado uma meia dúzia de honrosas excepções), também se pode afirmar que, no caso dos blogues, a optimização massificada da expressão não logrou tornar visíveis, até hoje (salvo a mesma meia dúzia de excepções), novos “génios” anteriormente ofuscados pelo “sistema”.
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Ortega Y Gasset percebeu muito bem no seu tempo que as vozes que nunca tinham aparecido no espaço público começavam subitamente a singrar. E baptizou-as, sem grandes ironias (La Rebelión de las masas, 1939), como a voz do “señorito satisfecho” ou do “niño mimado de la historia humana”. Adoraria saber como é que Ortega baptizaria, nos tempos que correm, este novo ‘caudal’ que procura sagaz e desesperadamente o ‘core’ de uma renovada expressão.
Ter-se-ia ele lembrado da questão do “tom”?

terça-feira, 20 de junho de 2006

O "tom" dos blogues - 38 (act.)

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Gianni Vattimo disse que o design era o “sonho de um resgate estético da quotidianidade através da optimização das formas dos objectos, do aspecto do ambiente” (A Sociedade Transparente, 1989). Este tipo de esteticização do quotidiano acrescentou à eficácia da cultura material aspectos formais autónomos (estéticos), cuja função era criar múltiplas sugestões e perturbar a tradição de adequação tácita entre acondicionamento formal e funcionalidade (uma colher apenas para comer, um armário apenas para guardar, uma cadeira apenas para sentar).
E a verdade é que o design não só não perturbou o legado da eficácia técnica como ainda lhe acrescentou uma diversidade de valores que havia sido ditada pelas vanguardas artísticas do século XX (sobretudo as linhas de “expressão” - expressionismo, informalismo, etc. -, as linhas de “formatividade” - cubismo, stijl, op art, etc. - as linhas de “arte útil” - bauhaus, construtivismo de Malevich, etc. – e as linhas da “redução” - arte minimal, arte conceptual, etc.). É por isso que, para Vattimo, o design foi entendido como um resgate estético do quotidiano. O sonho, em tal concepção, passou por uma espécie de elevação do quotidiano: neste caso, o ter concedido ao dia a dia aquela sacralização que foi sonhada para o estético desde o Iluminismo, ou seja estender a nova catedral - que se enclausurara em museus, galerias e salões - ao asfalto das ruas e aos ambientes de passagem ou de habitação.
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A blogosfera é a consecução de um sonho parecido. Não se pode dizer que a blogosfera é a parte da rede que ligou o quotidiano a um devir estético (distante da função transitiva de meramente sinalizar), mas pode dizer-se que a blogosfera está a reinventar um conjunto inovador de conexões entre a experiência pessoal (e às vezes íntima) do quotidiano e um eclectismo de regras e linguagens que são em si mesmas uma procura.
Poder-se-ia até ir mais longe e reivindicar para a blogosfera um certo tipo de ‘efeito estético’ que resulta da permanente adaptação da linguagem ao multi-posicionamento das escritas na relação com outras escritas hipertextuais e com o novo meio em que se inserem. A linguagem no novo meio blogosférico é uma linguagem que acaba por flectir em tempo real, como se fosse um corpo em movimento, mas sem regras óbvias que lhe apontassem uma sintaxe apropriada, uma locução tipificada e um sentido estrito de finalidade. O jogo desta nova linguagem é a pesquisa da sua própria expressão, afinal. Este tipo de ‘efeito estético’ que se sente na blogosfera vive sobretudo de um princípio que o design tornou presente há algumas décadas: uma permanente perturbação no que sempre foi um encaixe perfeito entre acondicionamento e finalidade.
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O que se escreve nos blogues tem características de inacabado e vive sempre na iminência da sua flutuação noutro local da rede. Em cada palavra escrita na rede existe sempre um parapeito de perturbação ou um limiar de transtorno, na medida em que o destino da enunciação anda invariavelmente associado a uma imponderada mobilidade.
É por isso que se constata nos blogues uma espécie de suspensão do texto e das imagens que se traduz por marcas e inscrições variadas (esta uma matéria fascinante para investigar de modo mais aprofundado: encadamentos sintácticos, formas fáticas, estratégias de síntese, teores condensados, etc.). É como se o próprio texto soubesse que está inevitavelmente condenado a uma metamorfose, à mão de anfitriões sempre provisórios e desconhecidos. Um texto de hoje será, noutro dia, já outro texto; ou melhor: um texto de hoje poderá ser, noutro altura qualquer, ele próprio e muitos outros que nele e com ele se terão cruzado e interagido.
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A blogosfera também está assim muito próxima do tal “resgate do quotidiano” de que falava Vattimo, embora por via da optimização de formas expressivas em contínua adaptação aos impactos da instantaneidade comunicacional (o “tom”).
Tal como no design, a perturbação e a eficácia complementam-se na blogosfera.
A primeira, por transtornar a sequencialidade tradicional das escritas, por criar polaridades sugestivas e ainda por perturbar a tradição que sempre adequou à funcionalidade um pacote expressivo hipercodificado. A segunda, por repor a individualização na sua relação com uma agenda de grande proximidade (geralmente colocada fora da visibilidade dos média e de outros tipos de mediações tradicionais) e de vizinhaças múltiplas e inadvertidas.
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P.S. - Quando se reage a esta série deste modo, é preciso dizer uma palavra. Afinal, não gosto de reagir com indiferença. O que atravessa esta reacção (aparentemente descontraída e convencida) é, ao fim e ao cabo, o ressentimento e sobretudo a invídia. Não face a mim, como é óbvio e natural, mas face a um objecto fantasmático que representa como sendo o oposto daquilo que sente que é: uma pequena partícula na galáxia da rede. Tem pena de o reconhecer e não o podendo aceitar, reage atacando (injustamente) quem com ele se cruza. E fala da “bola” e das “três palavras novas” que um tipo inventa por dia. E fica todo contente.

domingo, 18 de junho de 2006

Evocação e novidade

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Não, não esqueço que foi ele quem, em 1998, me lançou A Falha ali na 'Livraria Notícias' do Rossio (ao lado do Nicola). Fomos colegas de editora e lembro-me como ele era um homem amargurado. Agora está em paz, espero-o.
Para a semana, continuarão 'Os "Tons" dos Blogues'. Sim, a coisa vai dar livro, já o decidi.

sábado, 17 de junho de 2006

O "tom" dos blogues - 36

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No final da exultante entrevista do académico galego Carlos Oliveira ao filósofo Peter Sloterdijk (que deu origem ao Ensaio sobre a Intoxicação Voluntária, 1999), este último afirmava sem quaisquer reticências: “A escrita é a mais admirável descoberta da história da humanidade – também a que temos menos compreendida, e a mais perigosa. Só há muito pouco se lhe juntou algo mais perigoso ainda: os efeitos radiotelepáticos (…)”. A explicação, depois, não deixa de ser cativante. Sloterdijk separa nas escritas “à distância” duas formas: a telemática, esse “misterioso fluxo que faz passar um quantum de poder daqui até ao ponto distante, onde age” e a telepática, ou seja, o próprio “transporte de signos”.
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Sendo franco, deve dizer-se que o termo “telemática” foi criado por Alain Minc em 1978 (a partir de “telecomunicação” + “informática”) num artigo sobre a “informatização da sociedade” e corresponde hoje, reportando-me à autora contemporânea Cláudia Giannetti, a um campo do saber que investiga a dissociação entre o corpo e a informação. O espaço telemático é assim encarado, nesta acepção como na de Sloterdijk, como uma rede em constante mobilidade que permite visionar a ideia de televiagem e – tal como sustenta Giannetti – a “transladação imaterial para qualquer sítio em tempo real”. Não seria tão utópico (para utilizar um termo marcadamente clássico) e entenderia a dimensão telemática como a própria entidade global composta em rede por ‘hosts’ e ‘routers’ que vive e se expande a partir de uma miríade permanente de interacções locais. A forma telemática condensa assim o circuito que se regenera e metamorfoseia ‘em tempo real’ e que assegura a passagem quase ilimitada de ‘bits’.
Já a dimensão telepática alia conteúdos, ou “efeitos páticos” (mais concretamente: a emissão de ‘formas de conteúdo’ que, tal como na sedução, produzem efeitos nem sempre determinados), ao pressuposto da distância (tele). Este aspecto telepático - que tem a ver com o ‘topic’ das mensagens e com o que se diz e mostra – está hoje em dia a ser muitíssimo subalternizado, segundo Sloterdijk, face à euforia extrema com que a novidade telemática é encarada. Sobretudo porque estaria por estudar o impacto dos conteúdos (a perlocução) em regiões de distância indeterminada.
Como se o que realmente contasse fosse o novo mecanismo, o novo esteio polimórfico de vias, os novos circuitos policentrados: a rede, numa palavra. E como se o que menos realmente contasse fosse aquilo que ‘se vê’, que ‘está lá’ e que ‘passa’ através das mensagens (os conteúdos). No fundo, esta supremacia do telemático sobre o telepático colocaria em evidência a mera sequência discreta de figuras que repete a sua permanente descontextualização, independentemente das consequências daquilo que se mostra e que se diz (a violência, por exemplo).
Para esta tremenda pressão do telemático sobre o telepático existiriam, segundo Sloterdijk, variadíssimas explicações embora todas elas se pudessem resumir numa única: a era “pós-analítica” teria entrado definitivamente em cena, o que quer dizer que o olhar que antes falava de signos se teria transformado subitamente num olhar que se limita a falar dos canais por onde viajam os signos. Deste modo, os signos teriam descoberto a sua quase invisibilidade face ao tempestuoso império dos circuitos.
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A visão de Sloterdijk é interessante, mas desliga excessiva e mecanicamente as operações que decorrem dos usos comunicacionais (quer do uso rede, quer do uso do material que designa por “pático”, ou seja, da ordem dos conteúdos). Ao fim e ao cabo, o uso pode confundir-se com o próprio uso da rede, do mesmo modo que o contínuo processo de criação de significado se pode confundir com o uso de cada signo: um signo é sobretudo um modo momentâneo de apropriação de uma dada linguagem e de um conjunto de codificações que se segmentam. Já lá vai o tempo em que a arquitectura dos signos era estática, monolítica e não entendia, na sua nevoenta ‘estrutura’, a mobilidade e o eclectismo plural dos seus termos (subdivindo-se, quase sempre, em termos binários e estanques).
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Se olharmos com autenticidade empírica para o trabalho diário na (e com a) rede, toda a análise de Sloterdijk se podia inverter, já que é a própria realidade tensional entre telemático e telepático que nos deverá fazer pensar nos novos modelos semióticos e comunicacionais do presente e não o contrário (sendo que o contrário tem a sua origem, quase sempre, num juízo que localiza a priori um incómodo). Isto é: interessará sempre mais o dado e tudo o que ele (teoricamente) suscita, do que a perversão de uma realidade não desejada que é, afinal, movida pela própria alteração incessante de dados reais.
Por outras palavras ainda: tradicionalmente, o telepático correspondeu àquilo que a mente sempre processou, apesar dos meios que tal processamento implicava. Na contemponareidade, os ‘meios’ (o telemático) e o que ‘se diz’ (o telepático) há muito que se subsumem mutuamente. Esta avassaladora e híbrida ‘integração’ é, aliás, muito semelhante à que se processa, a todo o momento, a nível neural: as mil biliões de conexões interneuronais criadas por fibras conectoras (entre células e neurónios) são de facto indissociáveis daquilo que ‘dizem’ as imagens da nossa mente (e que fazem aparecer - utilizando a terminologia de A. Damásio - o “proto-si”, a “consciência nuclear” e esse “grande-filme-do-cérebro” que dá pelo nome de “consciência alargada”).
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Estes factos têm igualmente impacto nos blogues, essa parte da rede que amalgama discursos da primeira pessoa numa sintaxe latitudinal (vertical) de fragmentos em que a actualização corresponde a uma faixa de topo e em que o sentido de comunidade corresponde a um tipo de interacção diverso da dos websites tradicionais.
Com efeito, no caso dos blogues, a análise de Sloterdijk aparece um tanto viciada em contraste com o que se passará noutros tipos comunicacionais da rede. Em primeiro lugar, pela menor atenção que no seu seio é dada aos impactos telemáticos – i.e, aos efeitos imediatos do circuito – e, em segundo lugar, pela maior atenção que é concedida à criação telepática, sobretudo através da recusa tácita dos blogues em constituírem-se como simples bancos de dados passivos.
É verdade que na blogosfera, o que é telemático decorre sobretudo da preocupação com o tráfego e com os ‘links’ (o espectro dos contadores e de sistemas como o Tecnhorati). É nesse espanto, mais ou menos fetichista, que a magnitude dos circuitos – da rede - é revista na enunciação dos próprios blogues. O que é telemático, curiosamente, tende a tornar-se um tanto preponderante. Por exemplo, a remissão entre blogues pressupõe quase sempre um diálogo entrecortado profundamente “pático”, carregado de pequenos impactos mais ou menos calculados (sátira, cumplicidade, ênfase, crítica, alegação, referência simples, etc.), enquanto o chamado estado ‘pós-analítico’ - que Sloterdijk evoca no seu texto - não parece já corresponder aos temores e pudores com que se revelou há uns anos na blogosfera (em 2003, o metabloguismo era quase um tabu; hoje é um dado devidamente enquadrado e mais descomplexado). Também não se descortina no mundo dos blogues a atitude judicativa que implicasse repor forçadamente os desequilíbrios entre os níveis telepático e telemático; ao invés, vislumbra-se antes a construção a posteriori de uma linguagem e de formas expressivas renovadas que se estão a adaptar ao novo meio no seu todo (a questão do “tom”). É esta - mais uma vez - a questão-chave, na medida em que a própria adaptação é, em última análise, uma integração sui generis dos novos meios postos à disposição dos bloggers (o telemático) ao que é possível ‘dizer-se’ e ‘mostrar-se’ (o telepático).

sexta-feira, 16 de junho de 2006

O “tom” dos blogues – 35

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Na caixa de comentários de “O ‘tom’ dos blogues – 30”, Sarah Brasseur do Flor de estufa fazia eco de um aspecto importante da blogosfera: como é que o 'autor – enunciador - editor' encara o seu blogue? A “sério”, como uma inevitabilidade lúdica, como um "brinquedo" (a expressão é da Carla do Bomba Inteligente), como uma companhia, como uma fábrica expressiva, como um conclave de desabafos, ou como o quê? A resposta - sempre incerta - a estas perguntas denota desde logo o leque de novidades com que o novo meio cerca o blogger, perante a sua ilusória e quase ilimitada liberdade.
É um tipo de pergunta que esteve provavelmente mais em voga nos idos de 2003, quando entre a emergência da blogosfera e a reflexão sobre o fenómeno ainda havia um certo e compreensível pudor. Geralmente, a seguir às revelações foi preciso deixar passar alguns séculos até que a teologia aparecesse (neste caso, Santo Agostinho está para o Cristianismo como o Mu´tazilismo e o Kalâm estão para o Islão). Acontece que na blogosfera, um século é um ano. E é por essa razão que hoje se pode dizer que já lá vai o tempo em que o metabloguismo era visto como um excesso.
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Nos tempos iniciais da blogosfera, a impressão de imediatismo na autoria e edição já se confundia com aquilo que era a difícil arrumação da linguagem no novo meio (assim como o que ela podia vir, ou não, a dizer). O “tom” já andava por aí, embora algo informe. A ideia de “impetuosidade” traduzia muito bem, à época, no Glória fácil, este súbito encantamento de partilhas:
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"Metabloguismo/ O blogue é para impetuosos: os que abrem isto e, num instante, despacham uma ideia com as vírgulas no sítio. Os outros estão condenados ou a deixar-se ir pelos seus raros ímpetos (e a escrever pouco) ou a dedicarem-se à patética figura de "treinar" postes: espera aí meia-hora que eu tenho de apurar um "post". Acho que não consigo escrever mais por isto."
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O metabloguismo também aparecia na altura entendido como uma forma de contornar e objectivar a súbita “vertigem” da comunicação entre novos autores. Esta metáfora – a “vertigem” - é recorrente ainda hoje e traduzia, como ainda traduz, a matéria de que é feita o novo meio (geralmente esta matéria confunde-se mais com a celeridade do processamento e menos com o impacto de conteúdo que imprime – a perlocução):
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"Discutir devagar/Os blogues, apesar de não terem aparentes constrangimentos físicos à publicação de textos longos, não "aguentam" textos longos, por razões certamente complexas (como a leitura em hiper-texto e a leitura em formato-écrã, associadas, claro, à eventual falta de interesse dos textos). Para contrariar isso, devemos pedir ao leitor que nos leia devagar, que imprima o que escrevemos - o que fica sempre mal à modéstia que se exige a quem escreve -, que continue a ler noutra janela. Mas nada disto funciona muito, porque é a própria escrita que tem um ritmo vertiginoso, casando-se bem com posts curtos, convidando também a uma leitura vertiginosa. Ora, a vertigem é inimiga da calma exigida à reflexão e ao aprofundamento de uma ideia, ao tempo necessário para assimilar ideias ou imagens complexas. Os textos longos, os livros, são uma forma de recuo em relação ao imediato, e esse recuo exige tempo. Daí também tanta necessidade regular de metabloguismo."
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O início da blogosfera denotou ainda algumas marcas de pureza que prenunciavam claramente a actual procura do "tom", i.e., a pesquisa de uma expressão que se optimizasse na esquadria proposta pelos vários ‘hosts’ de blogues. O Francisco do Aviz explicava o seu aparecimento na blogosfera “para ver se era possível dizer alguma coisa”. Depois, percorridos os primeiros tempos, tudo “acabou por” (o sentido dedutivo é interessante pois pressupõe uma experiência de facto pioneira em que tudo podia ter acontecido) encontrar sentido através de uma estrutura previamente conhecida: o “diário”. A linguagem acomodava-se assim ao novo meio que era também desenhado como “intimista”. Leia-se o post em causa:
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O que falta à blogosfera/ “Comecei o Aviz como toda a gente: para experimentar e para ver se era possível dizer alguma coisa. Acabou por ser um diário com poucas interrupções; nunca medi audiências e o assunto pouco me interessa; tem uma circulação que desconheço (uso o netcode.pt para fazer rastreio de «referências» e não para contar visitas); é «intimista» quando me apetece, confessional quando preciso, irritado quando acontece. Ainda no meu caso — o que é estritamente pessoal, portanto, oscilando nesta fronteira do semi-público — nem sequer o faço para escrever sobre coisas «que não cabem noutro lugar» ou para «fazer exercício». Faço-o enquanto houver blogosfera, e mais nada — e enquanto tiver tempo ou precisar de escrever sobre o que me apetecer, sem agenda, sem alguém a pedir-me satisfações.”
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Por vezes, a dificuldade em aceitar a ‘teologia’ face à ‘revelação’, colocava em evidência o “narcisismo”, como se ele fosse a principal ilação deste confronto entre o submergir do novo meio e um discurso que evitasse o inevitável encadeamento especular:
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“Em 1999 a Fundação Gulbenkian organizou uma exposição com os auto-retratos da sua colecção. Ontem encontrei por acaso o catálogo dessa exposição. Lembrei-me então de quando a visitei e das deambulações teóricas que nessa altura uma guia da exposição fez a propósito de um pintor – Gaetan – que só pintava auto-retratos. O Narcisismo era o ingrediente, tal como agora o vai ser, dada a importância dessa substância no nosso metabloguismo.”
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Três anos depois, apesar de tudo, o blogger ainda hesita no modo como deve (ou não) encarar e articular-se com o seu blogue. As perguntas permanecem irrespondíveis e não encaixam em nenhuma das respostas tradicionais, apesar da indivuação clara que invadiu a blogosfera (nem naquelas respostas que subsumiam o papel do autor a mecanismos formais, nem nas respostas que evidenciavam a subjectividade como uma mancha quase já diluída na conectividade da rede).
Nada melhor do que alguns bons exemplos.
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1-Paulo Gorjão reata em post recente, ainda que involuntariamente, um conhecido subtexto literário (“Um Blogger apresenta-se”) com um acrescido interesse: a curiosidade dos interactores. A tentação não é imune a alguma hesitação e chega mesmo a evocar os “leitores” (que “acabam por ter alguma curiosidade sobre como será a pessoa por detrás do blogue.”), contrastando assim em absoluto com o que significava, há uns séculos, a palavra ‘curiositas’ (sobretudo heresia). Veja-se e leia-se, já que a interessante apropriação das linguagens e meios presentes fala por si própria:
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“E por falar em media/...tive a oportunidade de exibir a minha gravata preferida no jornal da meia-noite da SIC NOTÍCIAS, de quinta para sexta-feira. Apesar das notórias entradas, devo dizer que a imagem me favorece, uma vez que não se vê a careca. Note-se que ainda por cima tive o cuidado de voltar a fazer a barba...
Enfim, esta conversa serve apenas de pretexto para colocar aqui a minha fotografia, uma vez que sei pelos emails que recebo que os leitores -- alguns, pelo menos -- acabam por ter alguma curiosidade sobre como será a pessoa por detrás do blogue.”
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2-A consciência da individuação não é ainda, nos nossos dias, uma coisa muito clara. Mas a lógica de uma procura – ou e uma pesquisa - não parece entregar-se a juízos alheios. Em três anos, apesar de tudo, a névoa desceu e alguns contornos da hesitação expressiva tornaram-se mais límpidos. Existe, de facto, um novíssimo “Eu” em cena a contracenar com o globo e com a solidão. Fritz Lang teria apreciado a encenação simples mas operática:
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“Metabloguismo/ Há blogues sobre eu e o mundo e blogues sobre o mundo e eu. Prefiro os primeiros. Eu à procura do mundo.”
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3-Por fim, como se fosse um renovado clímax da hesitação, há momentos em que as perguntas de fundo ainda se continuam a propagar: O que move os blogues? Qual o movente? Os detalhes confessam-nos, muitas vezes, que a individuação é capilar e que, por isso mesmo, se move de forma autónoma como se existisse um algorritmo que a pusesse em marcha sem qualquer determinação a priori:
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“Os interesses/ Agora que o registo de interesses está na moda, seria curioso que os bloggers também os declarassem. Interesses, no caso, não tem nada a ver com o dinheiro que têm, que querem ter, as relações que cultivam, ou até os prazeres que perseguem. Não, nada disso. Algo de muito mais concreto, mais rasteiro - seria bom que muitos bloggers dizessem claramente o que os move. Eu sei que é difícil, mesmo nos casos em que está na cara, é difícil reconhecermos em público as pequenitas deficiências de carácter, de lógica, de pensamento, apenas por um conjuntozito de ódios ou, ao invés, de aspirações na vida. Pois...”
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Uma outra forma de colocar em evidência as chamadas perguntas de fundo é reenviá-las a posteriori com toda a simplicidade (uma coisa dada, mesmo se incómoda, está lá: deixemo-la!). No final do primeiro post onde evocava o Grande Prémio da APE-2005 que acabara de vencer, o Francisco da Origem das Espécies (os autores vão-se adaptando às marcas) rematava dando corpo a esse espírito parcimonioso:
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“Também é verdade que foi o livro que mais gostei de escrever. Diria muito mais coisas, mas não estamos aqui para isso, pois não?”
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O “topic”, a “aboutness”, aquilo de que se fala – ou de que não se fala - continua tão resolvido como por aclarar. Vantagem nossa (a primeira pessoa do plural é própria de uma comunidade). A expressão não é, pois, apenas o acomodar da linguagem no novo meio; é também o modo como ela se transforma à medida que o meio se torna cada vez mais povoado e gregário. Daí que o modo como o 'autor – enunciador - editor' encara o seu blogue dependa muito mais da zona de impacto das interacções do que de meia-dúzia de certezas provisórias (a provisoriedade no metabloguismo de rede é inversamente proporcional ao excurso da teologia).

quinta-feira, 15 de junho de 2006

O "tom" dos blogues - 34

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A mente é uma mesa de montagem onde a ambiguidade e a resolução andam de mãos dadas. Aí se processam súbitas integrações que mobilizam todo o tipo de imagens actuais (fruto da scannerização ininterrupta que é ditada pela relação entre organismo e exterior), de dados memoriais, de figuras “somatossensoriais” (A. Damásio) e de dados antecipadores.
O instante da montagem, aquele vórtice que parece sempre anteceder a adequação ao deus nietzchiano (a gramática), é extremamente parecido com o ‘vir ao ser’ de todo e qualquer enunciado criado na rede. Quer no hipertexto, quer na ‘incisão’ criada pela individualização blogosférica, a linguagem como que gravita à procura de centros ou de referências. Nada a encaminha para a finalidade, ou para a determinação de um sentido explicativo. A prospecção e a multimodalidade são as suas funções primárias e é por isso que os blogues raramente mantêm, ao longo de vários dias, uma mesma sequência de posts.
O poder da miscelânea e o fogo cruzado de temas e tópicos está mais de acordo com a oscilação e com a deriva que faz da linguagem uma companheira nómada que procura sítios sempre passageiros (vértices, nós, paragens, remissões, locais indexicados, sinalizações de posts, excertos, intertextos diversos, etc.) para dizer de si o que muito bem lhe apetece.
A temporalidade definida como ‘tempo real’ faz da individuação blogosférica um eco que se multiplica nos ecos de uma comunidade, de um ‘being-in-common’ (Alec McHoul). O meio é labiríntico e tendencialmente gregário, parecido com o de uma alcateia virtual, embora sempre reduplicável.
Cada internauta - cada blogger - visita mais assiduamente um mesmo conjunto de blogues, mas pode instantaneamente ser vítima de uma interacção mais vasta. Na blogosfera, as alcateias alheias são sempre as alcateias próprias. O alheio e o próprio são como Janus e propagam-se sem que nada os controle. A palavra voa e faz da sua safra uma ventania em campo aberto.
Se há dispositivo de controlo, ele coincide com a expansão da rede que coabita, por sua vez, com a singularidade da palavra; do mesmo modo que a grande mesa de montagem – a mente – é homóloga ao modo como a linguagem ocupa as suas posições: o tom, ou a livre procura de expressão, que excede dia a dia o ‘invisible-dedans’ da velha tradição metafísica.
É por isso que as coisas aparecem - ou podem aparecer - ditas na blogosfera com aquele cristalino ar da mais pura coloquialidade e do acaso. O que é próprio excede o que é alheio (a regra, a contusão, ou o constrangimento expressivo) e o que é alheio penetra no que é próprio, sem que se saiba muito bem qual o lugar do quê.
As coisas versam sobre si próprias e dançam de olhos fechados num salão sem fim. Como se o lobo uivasse de olhos fechados, focinho prostrado no céu e à volta, no campo aberto pela imensidão cruzada de posts, as alcateias se dispusessem em ilimitada transumância. Melancolia, felicidade, temor, mas palavra: sim, a dávida da palavra que parece ter saído do monocarril onde o sintagma a apertara, em jeito de travelling, a long time ago.
Nada melhor do que um post do Pedro – um dos co-fundadores deste reino e insistente (da isotopia) do “contem a vida como ela também é” - para confirmar o diagnóstico:
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“Eis um dos muitos motivos pelos quais eu gosto tanto de blogues. Um tipo passa o ano a ouvir frases como "Mas custa. Não se fode". E nos jornais e nas revistas nada, nadinha, nem traço disso, nem vestígios dessa realidade, apenas revistas femininas, revistas masculinas, maminhas, modelos, namorados no metro, publicidade, a mui trombeteada revolução sexual, avanço nos costumes, desde 1974 que não sei quê, a Merche, os ginásios, os umbigos, as discotecas, gente disponível, sem preconceitos, sociedade desinibida, segundo um estudo do ICS, segundo um estudo da Católica, segundo o Miguel Vale de Almeida, segundo a conferência episcopal, o hedonismo isto a civilização do corpo aquilo o Giddens aqueloutro. Nos jornais e nas revistas apenas isso, o chinfrim do mundo aldrabado e sem vergonha da sua aldrabice. Haja blogues que contem a vida como ela também é porque a vivemos ou ouvimos contada: "Mas custa. Não se fode".
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P.S. - A crónica de hoje de José Pacheco Pereira (Público, sem links) desenvolve - como escreveu Genette há um quarto de século - ligações "arquitextuais" com bastantes aspectos que têm sido aqui aprofundados nesta já longa série acerca do "tom" dos blogues (onde a prática da citação é fruto do bom senso e não tanto de uma autocompulsão ética). Um bom sinal dos tempos, dir-se-á.

quarta-feira, 14 de junho de 2006

O "tom" dos blogues - 33

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Muito antes do advento da cultura ‘Pós, Pós’, os dispositivos expressivos centradas no Livro/livro já interiorizavam, há milénios, a ideia de ‘fim’. Revi isso em alguns dos meus próprios livros (Anjos e Meteoros, Viragem Profética, etc.), li-o em certos autores (como Kermode, Baudrillard, Schwartz, etc.), constatei-o claramente em certas épocas (guardo um bom conjunto de revistas do final de 1999) e fascinei-me com o facto em projectos de investigação que já lá vão (sobretudo com um que decorreu a partir da UQAM de Montréal e em que participei activamente). Todo este eco me parece hoje encoberto por uma névoa bastante espessa e distante.
E porquê? Justamente porque a rede inventou um novo modo de ‘morrer e nascer ao mesmo tempo’, como se com isso tivéssemos fundido a anamnese platónica, o Nilo e a redenção do Ganges com um tipo de instantaneidade que luz hoje no ‘on-off'' dos olhos - já nada deslumbrados - das nossas crianças. Essa invenção, que atravessa o modo de vida da blogosfera de várias maneiras (o modo como os blogues acabam e recomeçam, ou como vivem da actualização permanente), retirou da expressão que vai dominando o novo medium uma tradição muito ligada à melancolia.
Essa tradição sempre se associou a um tipo de "História" - ou a um conjunto de narrativas -, cujo significado irradiava do passado por razões míticas, canónicas ou de domesticação moderna do tempo. No entanto, nas últimas duas décadas, esse tipo de narrativas estáticas - que me educaram na escola e fora dela - foram perdendo as suas estruturas subjacentes, os seus centros e a sua imperial territorialidade. O presente passou, subitamente, a ser o novo nome de uma nova melancolia. Já não uma melancolia que se estrutura em objectos fixos (na Carta do Pseudo-Hipócrates, a bílis era o humor da melancolia), mas uma melancolia que se dilui na euforia da interacção e na acelerada ‘des-referenciação’ da vida e do quotidiano.
Quando penso nos blogues e os associo a esta superação de um inevitável ‘horizonte de fim’, ocorre-me quase sempre Blanchot possuído pelo desespero apocalíptico de quem imaginou o último escritor sobre a terra (sim, o escritor: essa figura pós-romântica que encarnaria um deus a passear-se para sempre na brisa do espaço público).
Quase no final do seu livro, Le livre à venir (1959), Blanchot colocava em cena a morte do último escritor e perguntava, alarmado: O que resultaria de um tal facto? A resposta, umas linhas à frente, não se fez esperar: “Apparemment un grand silence”. É uma daquelas frases que sempre me perseguiu. A reflexão de Blanchot seria depois invadida por um tom algo dramático: com a morte do último escritor, apareceria “um novo ruído” e com ele anunciar-se-ia a era da não palavra (“l´ère sans parole”). Este novo ruído ouvir-se-ia para sempre. Mais, ele havia de escapar a todo o tipo de distracção e transformar-se-ia num verdadeiro vazio que fala (“un vide qui parle”): insistente, indiferente, sem segredos, capaz de isolar e separar os homens, capaz de separá-los de si mesmos conduzindo-os a labirintos ínvios e sem fim.
Este "ruído" – segundo o autor - consistiria num novo figurino de palavra, mas uma palavra exilada e bizarra. A natureza estranha desta palavra (“l´etrangeté de cette parole”) revelar-se-ia pelo facto de parecer querer dizer qualquer coisa, quando, ao fim e ao cabo, não diria, nem transmitiria absolutamente nada. É como se nessa palavra se exprimisse uma certa profundidade, embora com frieza, sem intimidade e sem alegria. E assim, desse modo fugaz, ela acabaria por ocultar-se por trás de tudo o que disséssemos e por trás de cada pensamento mais íntimo (“derrière chaque pensée familière”). Essa palavra – continuava Blanchot mais à frente, já no final do penúltimo capítulo do livro (capítulo IV) – seria “essencialmente errante” e “toujours au-dehors”, ao contrário, por exemplo, do monólogo interior que é movido por um centro: “ce “Je” qui ramène tout à lui-même, alors que l´autre n´a pas de centre” (pp.296-302).
Não é fácil encontrar uma premonição da rede, ao mesmo tempo tão melancólica e fascinante, quando esta de Blanchot (editada no ano em que saíram a público a Aparição de Vergílio Ferreira e a “Teoria dos grafos aleatórios” de Erdos e Rényi e um ano antes da publicação da sintomática ‘teoria da interacção simbiótica homem-computador’ de Joseph Licklider).
Fim por fim, ainda aqui andamos a tentar entender a metamorfose em que a palavra, afinal, se transformou.

terça-feira, 13 de junho de 2006

O "tom" dos blogues - 32

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Caso 1
Uma redacção é um corpo vivo, é verdade. Uma redacção de um jornal – ou de uma televisão – é a anfitriã porventura ideal de uma série de dados que vão sendo diariamente actualizados. Nesse local onde respiram vários corpos e onde se debate, minuto a minuto, a instrumentalização e a hierarquização de dados, tudo tende para um fim. Isto é: tudo tende para um esquema ou diagrama final. A edição constitui a consecução plena dessa antecâmara amplamente intertextualizada e o termo de um processo, de que se conhece bem o princípio, o clímax (no plural, ao longo de uma amplitude temporal determinada) e o final. Esta réplica muito indirecta dos pressupostos épicos pouco ou nada tem a ver com a comunicação em rede (os média tradicionais vão actualizando e categorizando - nos seus websites - os dados a todo o momento).
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Caso 2
Quando se entra no site da “Amazon.com” ou num hipermercado (este último, um exemplo de rede off-line que tende a reduzir na mente dos consumidores uma série de produtos e vectores numa extensão discreta de 'ligações' e 'nós'), verifica-se que o espaço é composto por um verdadeiro fluxo de formas. A voragem cromática, icónica e telemática contamina a hierarquização e, de um momento para o outro, tudo parece consumível e editável. Nestes meios, o design vive em fluxo, auto-reproduzindo-se, esgotando a capacidade de uma individualização que se adequasse a uma solução universal. Está lá tudo (ou é como se estivesse lá tudo). A introdução suplementar de qualquer forma ou dado nesses espaços (hipermercados e sites muito visitados) é sempre um acto menor. As matrizes iniciais, ao modo dos “pixels”, parecem dissolver-se e ao mesmo tempo corporizar-se nesta nova concepção que poderia ser baptizada como ‘design do design’. O excesso de inscrição assemelha-se ao efeito de um tranquilizante que, enquanto adormece os espíritos, também os exalta no sentido da acção: viajar, comprar, persistir e, de qualquer modo, permanecer, visitar e revisitar, ou seja: manter-se sempre e continuadamente ligado (à rede). Estes tipos comunicacionais, ao contrário dos média clássicos, vivem do e para o clímax.
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Caso 3
Nos blogues não há manchete. A antiga faixa-imagem de que falava Rosselini é, hoje em dia, na blogosfera, uma faixa vertical que não está sujeita a qualquer tipo montagem. Tudo aí permanece, desdobrando-se em arquivos, embora seja a parte de cima da faixa o que realmente vigora: é esse o espaço dominante e útil de interacção (ainda que a transversabilidade da rede, ligada ao agir dos motores de busca, possa, a qualquer momento, ‘desenterrar’ qualquer outra parte da faixa).
Neste sintagma vertical (chamemos-lhe sem ofensa ‘guindaste caleidoscópico’), a hierarquização torna-se apenas possível através de posts com finalidade indexical (a sua função é remeter para actualizações de posts anteriores), através da preservação do último post durante algum tempo (com uma desvantagem: a desactualização na blogosfera baseia-se no princípio ‘to post or not to post’), através da enunciação de uma série que mantenha alguma consistência temática, ou ainda através da edição de rubricas estáveis que se sucedam com um mínimo de regularidade.
O que faz de um blogue um corpo vivo é menos este jogo de sucessão e hierarquização e mais o tipo de preenchimento que não tem uma finalidade clara (como acontece nos média clássicos). Aqui o que perdura acontece: as vozes que respiram na blogsofera, ao contrário das que convivem na redacção de um jornal, são dispositivos de enunciação que se vão enquadrando através de fragmentos de texto, independentemente da sua natureza ou categoria. A miscelânea que assim se actualiza vive aparentemente sem clímax nem desfecho, como se a intermitência realizada aliasse - embora de forma mais discreta - o já referido efeito de tranquilizante à inapelável fuga para a frente que pressupõe o fervor (a exaltação) e o próprio de fluxo do preenchimento: continuar sempre a escrever, a postar, a permanecer. Continuar a viajar, a visitar, a revisitar e a permanecer constantemente ligado (à rede).
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Se num site muito visitado, ou numa rede de hipermercados, o design vive em verdadeiro estado de fluxo, auto-reproduzindo-se e quase estancando a possibilidade de individualização, já nos blogues é a obsessão do preenchimento que vive em fluxo e que se auto-reproduz sem nunca fechar as portas à individualização (sendo esta, aliás, o próprio modo como o blogger se adapta à apropriação da nova linguagem e às potencialidades do novo meio comunicacional).

segunda-feira, 12 de junho de 2006

O "tom" dos blogues - 31

Mapa da internet de Bill Cheswick e Hal Burch*
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A blogosfera situa-se na rede virtual e processa-se a todo o momento neste mapa que Bill Cheswick e Hal Burch têm estado a implementar desde 2000 (“The Internet Mapping Project”, sediado desde 2000 na Lumeta Corporation). O mapa tem o fascínio da cartografia de um oceano de galáxias: há nele um encanto estético neural e ao mesmo tempo espacial e mitológico.
Há naqueles traços segmentados, imprecisos e multidireccionais algo do nosso sorriso, do nosso espanto, da nossa estranheza e afirmação. Nota-se, tal como acontece na blogosfera, que há um número desmedido de nós pouco conectados e um número limitado densamente conectado. A comunicação expande-se permanentemente na rede e cada novo “link” é sempre um nova ‘linha de fuga’ e um novo arremesso na direcção do ‘para lá de’ (a expansão da rede segue o princípio da “retroacção positiva”: como uma bola de neve onde o efeito e a causa se geram espontânea e mutuamente).
Entre cada nó da rede, independentemente do caminho seguido, a viagem é muito breve (a distância média entre nós é, hoje em dia, calculada em cerca de 11,2 nós - método de Barabási). A “complexidade” de Neumann (i.e., uma realidade que não pode ser traduzida por um modelo – conceito de 1965) está agora a transformar-se num novo tipo de enquadramento que pode ser determinado através de cálculos formais, o que quer dizer que a expansão da rede (dos grafos) já não é de facto um devir puramente aleatório.
Para que a construção deste mapa esteja a ser possível – vislumbra-se nele qualquer coisa semelhante às grandes invenções e descobertas - , há que evocar aqui um protocolo hoje já histórico. Chamou-se inicialmente TCP (“Transmission-control protocol”, mais tarde conhecido por TCP/IP), foi criado em 1974 por R. Kahn e V. Cerf e veio permitir a comunicação entre redes de natureza diversa (a noção de rede vinha já sendo perseguida desde os tempos cibernéticos de McCulloch, Neumann e Wiener).
Articulado com este protocolo, que foi essencial para o aparecimento da internet tal como hoje a entendemos, surgiriam depois, entre outros, um conjunto de protocolos que tornaram possíveis, por exemplo, a rede virtual “WWW” (o protocolo “HTTP”) e o correio electrónico (os protocolos “SMTP” e “MINE”). Mas uma coisa é certa: todos estes protocolos que iam unindo ‘routers’ e ‘hosts’ só se preocuparam, desde o início, com o livre e aberto transporte de ‘bits’ (de informação) e nunca com os seus conteúdos. Uma tal opção constituiu – e constitui ainda hoje – um desses raríssimos factores-chave que são capazes de legitimar e significar uma era e que, para além disso, se tornam fundamentais, entre outros, para repensar o significado da liberdade e da democracia nestes novos meios.
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As implicações de todos estes factos são inúmeras, mas poderão ser resumidas, aqui, em apenas três linhas de força:
a) Em primeiro lugar, o agenciamento da rede reduziu-se sempre a ‘tipos expressivos’ (na linguagem de Hjelmslev, o lado material da comunicação), sendo os seus únicos conteúdos (o lado imaterial da comunicação, segundo o mesmo autor), aparentemente, o protocolo e a mobilidade, ou seja: a passagem seja de que tipo de informação for (voltarei a este tema);
b) Em segundo lugar, pressupondo o TCP/IP a criação de um espaço público, ele acaba por dissociar a rede de todo o tipo de propriedade como sempre a compreendemos (pelo menos, desde os legados de Locke): i.e., de modo territorial;
c) Em terceiro lugar, como notou recentemente António Machuco Rosa*, o protocolo TCP/IP permite ainda que a internet seja um meio essencialmente auto-organizado e vocacionado para o crescimento espontâneo, “imprevisível e não-regulado”.
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A blogosfera é um campo dentro deste vastíssimo campo que se alarga à medida que se expressa. Raramente um novo medium criou uma cartografia que ele próprio, em tempo real de auto-enunciação, ia agenciando. Quando Vasco da Gama ou Colombo processavam as suas cartografias, o mar já lá estava. Quanto Gutemberg, Muybridge ou os irmãos Lumière processaram as suas escritas, as gramáticas rapidamente se foram cristalizando. A semelhança apenas surge quando nos confrontamos, ou com as viagens espaciais, ou com as viagens neurais e ‘cyborguizadas’. A blogosfera é, pois, um dos poucos entrepostos contemporâneos que religa a expressão individual (e uma agenda de proximidade) à descoberta de um espaço onde é medium.
A adequação da linguagem ao novo meio - que tenho vindo a designar por “expressão” - é um dado paralelo à materialidade da comunicação da rede que se está a estatuir publicamente num universo vocacionado para o crescimento. A auto-organização do meio faz com que a gramática e a linguagem emergentes se equiparem às águas de duas nascentes que se tornam subitamente caudalosas, mas sem uma ligação estanque e previsível entre si.
Estamos a viver uma novidade e um estado de quase pasmo, embora sem os instrumentos que no-los permitissem auscultar com total ponderabilidade: é essa uma das virtudes da contemporaneidade. Por outras palavras: sobreviver entre a cartografia e a permanente expansão do cartografado. O ‘ritmo’ vertiginoso da expressão que se veicula na rede (o “tom” dos blogues incluído) só não é mais intenso do que a capacidade da própria rede em crescer. A ideia clássica de circumnavegação nada tem, pois, a ver com esta aventura que é ver o mar cada vez maior a envolver as caravelas de uma descoberta que parece sempre iminente e calculada!
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*The Internet Mapping Project de Bill Cheswick e Hal Burch, projecto desenvolvido desde 2000 na Lumeta Corporation.
*5 Lições sobre Comunicação, Redes e Tecnologias da Informação: da Cibernética ao Copyright, Vega, Lisboa, 2006.

domingo, 11 de junho de 2006

Dia de descanso

Como já vem sendo tradição, hoje é dia de descanso para o "Tom" dos blogues. Na semana que vem, a parada continuará (não se sabe até quando). Entretanto, há novos blogues que não queria deixar de fazer referência: o Sem Estrada do José Pimentel Teixeira (agora mais discreto, embora com o brilho habitual), o Luz Ilimitada (do meu amigo, cúmplice e fotógrafo José M. Rodrigues), o Prototype Collector da Ana Bezelga (que faz faísca minimal na vídeoarte) e ainda o Devaneios do Ricardo Gross (meu cúmplice de restaurante em Campo de Ourique).

sábado, 10 de junho de 2006

O “tom” dos blogues - 30

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Por que é que acabam tão rapidamente os blogues?
A pergunta poderia ficar em suspenso diante da realidade que todos observam dia a dia como se fosse uma coisa dada. Pois é verdade, de meses a meses, blogues com um ou dois anos de idade encerram as suas portas, dando origem a uma migração dos seus autores, ou para outros blogues, ou para a criação de novos blogues. O tempo de vida médio de um blogue é extremamente curto, mas é inversamente proporcional à sua elevada taxa de fertilidade. A mobilidade que se expressa neste ‘nasce-e-morre’ é vertiginosa e configura um dos sinais mais explícitos da vitalidade do meio.
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À medida que as gerações se sucedem, alteram-se os autores, as composições, os nomes e os estilos. Mas o que muda quase sempre de modo profundo (e fecundo), logo que um autor reaparece num novo blogue, é o enquadramento formal e o design. Estes aspectos clássicos da cultura material raramente existem em estado de metamorfose como acontece noutros locais da rede e sobretudo na eferverscência do mundo contemporâneo off-line. No caso da blogosfera, alteração de design significa, na maioria dos casos, o processo de ‘nasce-e-morre’ (o Miniscente, entre muitos outros blogues, é excepção a uma regra que - empiricamente - creio ser maioritária).
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Também raramente este ‘nasce-e-morre’ se assume através de novos propósitos editoriais. Os novos blogues abrem e a consciência que neles aparece é feita de imagens e figuras que salientam uma nova tonalidade expressiva, como se a aventura de cada ‘re-nascimento’ se traduzisse pela modelação e adaptação ao meio blogosférico de uma nova maneira. Mais uma vez, o “tom” ressurge como o mais importante elo da contenda que objectiva a quase permanente transmutação dos blogues.
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Há muitas espécies autoreprodutoras no nosso universo. Nesses ecossistemas, cada ser agencia a sua morte e reproduz-se, ao mesmo tempo, no ser que lhe legitima o genoma. Assim é o metabolismo pendular dos blogues. Questão de sobrevivência. Quando Nietzsche, em 1887, disse que o niilismo era o cansaço do homem diante do próprio homem (Genealogia da Moral), mal imaginávamos que essa fadiga imensa havia de percorrer o ensimesmamento da blogosfera mais de um século depois. É esse cansaço (dos blogues face a si mesmos) de quem não suporta a troca diária da coisa pela sua imagem que impele grande parte dos blogues a uma renovação intempestiva. Independemente dos meios, das justificações e dos balanços. Muitas vezes, o cansaço é tal que os autores que criam novos blogues removem da memória aparente da rede o testemunho do seu anterior blogue. De facto, a matéria permanece e bastará ir aos motores de busca para que ela reapareça. Um cansaço sempre ensombrado. Poe teria gostado.
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Se não há percurso e decantação editorial na blogosfera, também não existe reflexão individualizada acerca do processo deste ‘nasce-e-morre’. Ele ocorre e repete-se como na botânica, sem que as fenecidas plantas e as suas neófitas se ocupassem de razões. Um ‘exame de consciência’ ontológico nunca poderia ter lugar num blogue, já que aquilo que o anima é uma liberdade que vive lado a lado com a mais invisível das compulsões (nos média clássicos é o lucro que naturalmente se assume como a grande compulsão; aqui é a voracidade narcísica do niilismo).
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Tal como as imagens povoam o campo blogosférico através de processos indiscriminados e até aleatórios, tentando encontrar o seu ‘lugar próprio’, também a sobrevivência do meio parece directamente ligada à ininterrupta voragem do ‘nasce-e-morre’.
Mefistófeles predisse-o, afinal, nas últimas palavras do Fausto:
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Mefistófeles- Acabou-se ! Palavra sem sentido !
Acabou-se porquê ? acabou e nada
É tudo a mesma cousa ! Então que vale
A eterna criação ? Cousas criadas
Ao nada reduzir ! ‘ Está acabado’!...
Que quer isto dizer ? É exactamente
Como se nunca fosse, e todavia
Circula, como tendo inda existência !
Preferira ao que acaba o vácuo eterno.”
d
Já tinham pensado nisso?

sexta-feira, 9 de junho de 2006

O “tom” dos blogues – 29


("Ruínas Fingidas", Évora, Cinatti, 1865)
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É conhecida a tradição romântica que endeusou a obra não acabada. A paixão pelas ruínas forjadas fez escola em autores conhecidos e anónimos. William Gilpin (1724-1804), amante da poética das ruínas, chegou um dia a propor a destruição parcial de algumas villas de Palladio para que o gozo do “laconismo do génio” se tornasse possível. No jardim público oitocentista de Évora, um painel de “ruínas fingidas” – são ainda hoje assim designadas – encena com toda a intencionalidade o que restou da demolição do antigo Palácio Real. No final do século XVIII, o círculo dos românticos de Jena, nomeadamente Schlegel e Novalis, também não esconderam a paixão por uma estética do inacabado. Este último poeta traduziu o encanto pelo escorço segundo a fórmula: ‘devolver ao finito uma aparência infinita’. A própria ideia de fragmento, que entrou nos hábitos poéticos a seguir a Mallarmé, passou a remeter, tal como as ruínas, quer para o poema absoluto e acabado (nunca presente) quer para a sua negação.
Em todos estes casos de admiração pelo não acabado, pelo informe e pelo puro fragmento está em causa aquilo que, de modos muito diversos, Freud e Agamben designaram por fetichismo. Ou seja, a substituição de um todo (de um corpo) por algo que o representa com o intuito de simultaneamente o tornar presente e o ofuscar. Declinar o todo e, ao mesmo tempo, torná-lo presente parece uma operação complexa, mas não é. Faz parte integrante do modo como representamos o que desejamos (a fotografia na carteira), o que estimamos e o que coleccionamos (a série aqui dispensa exemplificações). Faz ainda parte do modo como comunicamos (a parte pelo todo – a sinédoque - ou a contíguidade entre termos – a metonímia - são tropos habituais que reflectem o fetichismo). Conseguir que o prazer navegue nestas águas agitadas que unem atracção e aparente desinteresse é, pois, um desígnio estético, sexual, mundano e comunicativo. O fetichismo faz assim parte da fantasia com que se imagina um vaivém regular entre um objecto que se visa e um (efabulado e bem tratado) objecto interposto que o prefigura.
Nos blogues este desígnio fetichista ocupa um espaço significativo da atitude expressiva. Para tal conta o modo como um post desafia os limites (só há limites quando se pensa um todo), como se articula com o tempo (de leitura e de processamento) e como se transforma em mero ritmo de escrita (uma simples palpitação que se contrapõe à natureza tradicional e compósita do objecto livro). Vejamos ponto por ponto:
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a) Cada post tende para variadíssimos textos que nunca constrói integralmente. A geometria do registo blogosférico prefere arrumar-se no fragmento onde não existe um limite claro a que tenha que submeter-se. O post é sempre um segmento que recusou a arquitectura, mas que, ao mesmo tempo, a transformou parodicamente em leve ‘storyboard’. O post é livre e anda à deriva entre várias possibilidades que se imaginarão. Está muito para além da “obra aberta”, porque aquilo que o anima não é a dedução de várias finalidades possíveis por parte de um intérprete, mas sim a pura propagação na rede: dá-se a ver e logo desaparece. Reaparece, dissimula e logo aparece removido. A memória de um post confunde-se sobretudo com a simbólica de um ‘metabolismo inacabado’.
b) A sugestão e a ilusão do inacabado prendem-se também com o tempo. Mesmo as mais clássicas das obras inacabadas (seja o - tríptico cinematográfico - ‘Napoléon’ de Gance, seja a ‘Sagrada Família’ de Gaudi) não dispõem de um tempo que seja efectivamente o ‘seu tempo’. Nos posts, esta suspensão adquire recortes muito mais voláteis, na medida em que o ‘tempo real’ nunca chega a ser o tempo da edição: já passou, já refluiu – sempre - na direcção da reciclagem do olhar. É por isso que a leitura de um blogue se assume de forma oblíqua, descendente e anagramática: o olhar salta, ilude-se e sobretudo fantasia. O olhar desbrava hiatos de escrita e hiatos de não-escrita. Quando o utilizador clica e se retira, fica apenas um ritmo, um cromatismo, um ambiente, uma batida, um DJ em frenética actividade num espaço não sonoro. O tempo de um blogue não é nunca – radicalmente – o ‘seu tempo’.
c) A obsessão (a euforia) que liga o blogger ao blogue nada tem a ver com a pulsão que religava o escritor tradicional ao seu almejado e perseguido objecto: o livro. Este último apareceu sempre como a meta de um processo mais ou menos estável que se ia testemunhando, passo a passo, rescrita a rescrita, de acordo com as metáfora da incubação e da gestação. Curiosamente, alguma tradição literária (e não só, veja-se o caso de Artaud) sempre adorou associar este processo a uma “dor” e a um “sofrimento” terríveis, em analogia com ideia de parto (o livro era, nesta simbólica, o verdadeiro “filho” do escritor). Nos blogues, este tipo de completude quase biológica é substituída pelo mais elementar pulsar. E cada pulsação é uma vida, um texto ou uma mera silhueta que propende para a anamorfose logo que se expande em demasia. As expressões na blogosfera – à procura de si próprias - preferem ceder ao instante, ao ‘zapping’ do corpo, ao ‘copy paste’ que se extingue enquanto se gera. Ao contrário do ‘sofrimento criativo’ moderno, a anestesia blogosférica é vitalícia (a simulação será idêntica nos ‘cyborgs’) e advém do sobrevir, do design efémero e da nova ‘imortalidade da alma’ (ou o curso aleatório, dir-se-ia perpétuo, que os ‘bits’ incessantemente percorrem).