quarta-feira, 14 de junho de 2006

O "tom" dos blogues - 33

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Muito antes do advento da cultura ‘Pós, Pós’, os dispositivos expressivos centradas no Livro/livro já interiorizavam, há milénios, a ideia de ‘fim’. Revi isso em alguns dos meus próprios livros (Anjos e Meteoros, Viragem Profética, etc.), li-o em certos autores (como Kermode, Baudrillard, Schwartz, etc.), constatei-o claramente em certas épocas (guardo um bom conjunto de revistas do final de 1999) e fascinei-me com o facto em projectos de investigação que já lá vão (sobretudo com um que decorreu a partir da UQAM de Montréal e em que participei activamente). Todo este eco me parece hoje encoberto por uma névoa bastante espessa e distante.
E porquê? Justamente porque a rede inventou um novo modo de ‘morrer e nascer ao mesmo tempo’, como se com isso tivéssemos fundido a anamnese platónica, o Nilo e a redenção do Ganges com um tipo de instantaneidade que luz hoje no ‘on-off'' dos olhos - já nada deslumbrados - das nossas crianças. Essa invenção, que atravessa o modo de vida da blogosfera de várias maneiras (o modo como os blogues acabam e recomeçam, ou como vivem da actualização permanente), retirou da expressão que vai dominando o novo medium uma tradição muito ligada à melancolia.
Essa tradição sempre se associou a um tipo de "História" - ou a um conjunto de narrativas -, cujo significado irradiava do passado por razões míticas, canónicas ou de domesticação moderna do tempo. No entanto, nas últimas duas décadas, esse tipo de narrativas estáticas - que me educaram na escola e fora dela - foram perdendo as suas estruturas subjacentes, os seus centros e a sua imperial territorialidade. O presente passou, subitamente, a ser o novo nome de uma nova melancolia. Já não uma melancolia que se estrutura em objectos fixos (na Carta do Pseudo-Hipócrates, a bílis era o humor da melancolia), mas uma melancolia que se dilui na euforia da interacção e na acelerada ‘des-referenciação’ da vida e do quotidiano.
Quando penso nos blogues e os associo a esta superação de um inevitável ‘horizonte de fim’, ocorre-me quase sempre Blanchot possuído pelo desespero apocalíptico de quem imaginou o último escritor sobre a terra (sim, o escritor: essa figura pós-romântica que encarnaria um deus a passear-se para sempre na brisa do espaço público).
Quase no final do seu livro, Le livre à venir (1959), Blanchot colocava em cena a morte do último escritor e perguntava, alarmado: O que resultaria de um tal facto? A resposta, umas linhas à frente, não se fez esperar: “Apparemment un grand silence”. É uma daquelas frases que sempre me perseguiu. A reflexão de Blanchot seria depois invadida por um tom algo dramático: com a morte do último escritor, apareceria “um novo ruído” e com ele anunciar-se-ia a era da não palavra (“l´ère sans parole”). Este novo ruído ouvir-se-ia para sempre. Mais, ele havia de escapar a todo o tipo de distracção e transformar-se-ia num verdadeiro vazio que fala (“un vide qui parle”): insistente, indiferente, sem segredos, capaz de isolar e separar os homens, capaz de separá-los de si mesmos conduzindo-os a labirintos ínvios e sem fim.
Este "ruído" – segundo o autor - consistiria num novo figurino de palavra, mas uma palavra exilada e bizarra. A natureza estranha desta palavra (“l´etrangeté de cette parole”) revelar-se-ia pelo facto de parecer querer dizer qualquer coisa, quando, ao fim e ao cabo, não diria, nem transmitiria absolutamente nada. É como se nessa palavra se exprimisse uma certa profundidade, embora com frieza, sem intimidade e sem alegria. E assim, desse modo fugaz, ela acabaria por ocultar-se por trás de tudo o que disséssemos e por trás de cada pensamento mais íntimo (“derrière chaque pensée familière”). Essa palavra – continuava Blanchot mais à frente, já no final do penúltimo capítulo do livro (capítulo IV) – seria “essencialmente errante” e “toujours au-dehors”, ao contrário, por exemplo, do monólogo interior que é movido por um centro: “ce “Je” qui ramène tout à lui-même, alors que l´autre n´a pas de centre” (pp.296-302).
Não é fácil encontrar uma premonição da rede, ao mesmo tempo tão melancólica e fascinante, quando esta de Blanchot (editada no ano em que saíram a público a Aparição de Vergílio Ferreira e a “Teoria dos grafos aleatórios” de Erdos e Rényi e um ano antes da publicação da sintomática ‘teoria da interacção simbiótica homem-computador’ de Joseph Licklider).
Fim por fim, ainda aqui andamos a tentar entender a metamorfose em que a palavra, afinal, se transformou.