sexta-feira, 1 de dezembro de 2006

Pré-publicações - 7

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A Independência de Portugal: Guerra e Restauração 1640 – 1680, Rafael Valladares, A Esfera dos Livro
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O visitante desprevenido que percorra as imponentes salas do Museu do Prado à procura de imagens do tempo de Filipe IV, facilmente se apercebe de que o seu reinado percorreu, até ao ano de 1640, um generoso caminho de sonantes triunfos e de vitoriosas batalhas. Mas poderá ver, também, que algo aconteceu a partir daquela data, pois até o próprio Velázquez passou a utilizar uma paleta mais consentânea com as nuvens que começaram a cobrir a Monarquia de Espanha: aos seus anões e bufões deformados, seguiu-se uma série de retratos áulicos do rei nos quais este transmite a impressão de um cansaço que a sua fé católica, e a sua filosofia estóica, se compraziam em mostrar com uma exemplar inteireza. Daquelas décadas centrais do século xvii espanhol são poucas as obras que conseguem iluminar essa obscuridade. Depois do desaparecimento do conde-duque não foram pintados mais óleos de validos, nem a pé nem a cavalo, não obstante D. Luis de Haro, seu sobrinho, ter ocupado esse tão cobiçado posto até 1661, ano em que faleceu. Acabou, também, a glorificação de cercos e de rendições, sem dúvida porque a partir daquele momento, e ao contrário do que sucedera vinte ou trinta anos antes, os exércitos de Filipe IV já não eram os vencedores, mas sim os vencidos. Em 1659, e talvez para afugentar a derrota, o próprio rei, assistido por Velázquez, deu por terminada a nova decoração do Salão dos Espelhos do Alcazar de Madrid, espaço que prestava culto a uma dinastia identificada com o catolicismo. As telas escolhidas para decorar o salão foram: Carlos V em Mühlberg e Filipe II e a Batalha de Lepanto, ambas de Ticiano; Filipe III e a Expulsão dos Mouriscos, de Velázquez, um quadro actualmente desaparecido; e um retrato equestre de Filipe IV, da autoria de Rubens. A incerteza do futuro podia ser esconjurada através da contemplação do passado. Sob Carlos II, o Salão dos Espelhos – onde o rei sempre gostou de ser retratado – permaneceu sem grandes alterações.
Esta preocupação estética não decorre apenas da verdadeira paixão artística que caracterizou Filipe IV. Naquele ano, pouco depois de encerrada a guerra com França, os seus exércitos preparavam-se para enfrentar, numa batalha definitiva, o último foco de resistência que subsistia no império: a coroa de Portugal. O revés político e militar que o Rei Católico ali sofreu, atingiu para sempre a sua imagem e a da Monarquia, a qual, para além da perda da sua jóia mais valiosa, não pôde juntar à fabulosa pinacoteca régia uma nova série de pinturas dignas de comemorar a «restauração» portuguesa.
Ou talvez não fosse assim. Fazer guerra ao inimigo era algo de louvável para um príncipe cujos exércitos alcançavam semelhante façanha. Mas se o adversário era um súbdito rebelde, convinha simular perdão e, sobretudo, esquecimento. Da difícil e prolongada reconquista da Catalunha não resultou qualquer testemunho pictórico comparável às gestas europeias e americanas que Olivares ordenou que fossem expostas no Salão de Reinos do Palácio do Retiro. No que respeita a Portugal, nem sequer foi necessário reflectir sobre o assunto. Quem hoje deambule pelo Museu do Prado pode cair no erro de pensar que a história da Monarquia Hispânica foi a história da sua pintura, o que talvez explique por que motivo, depois de finalizar o percurso pelas salas de Velázquez, o visitante entra directamente na secção do século xviii, com destaque para a obra de Goya – exceptuando as suas célebres pinturas negras, oportunamente localizadas no piso inferior do museu. Assim, entre um e outro século não há pausa nem transição, mas apenas contraste, e um penoso vazio que agudiza – e reflecte – a representação ainda hoje predominante do declínio dos últimos Áustrias e o colorido ressurgir dos Bourbon. Simulamos perdão, e às vezes esquecimento.
É provável que este livro jamais existisse se tal tivesse dependido da vontade dos seus protagonistas, todos eles mestres na arte da contenção: os tempos impunham mesura. De certa maneira, as páginas que se seguem podem parecer cruéis e até irreverentes pelo modo como falam daqueles que rodearam Filipe IV durante o seu segundo reinado. Se a pintura dos anos que se seguiram à queda de Olivares deixou os historiadores órfãos de inspiração, não menos parco foi o interesse dos hispanistas pelo período que se seguiu a 1640, tradicionalmente considerado como um longo e pouco significativo apêndice do ministério de D. Gaspar de Guzmán. Se perdoar é próprio do ofício de rei, evitar o esquecimento é apanágio do mester de historiador. Por isso, o presente estudo trata de um tempo que procurou apagar a sua história, e que quase o conseguiu fazer.
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Actualização das editoras que integram o projecto de pré-publicações do Miniscente: A Esfera das Letras, Antígona, Ariadne, Bizâncio, Campo das Letras, Colibri, Magna Editora, Mareantes, Presença e Vercial.