quarta-feira, 7 de junho de 2006

O “tom” dos blogues - 27

Quando o próprio e o impróprio coabitam no mesmo espaço
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O recurso a imagens nos blogues é sistemática. É raro o blogue, mesmo se substancialmente a preto e branco (a dimensão estética cruza-se com a eficácia na blogosfera), que não faça aparecer na construção de mensagens – de posts - uma sequência quase infinda e complementar de imagens.
A questão que se coloca é esta: qual a função destas imagens no novo meio?
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Referência: Junto ao post “COISAS DA SÁBADO: 'QUANTO VALEM OS VERDES' ?”
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Não querendo de modo nenhum categorizar, há várias possibilidades que diariamente acenam o interactor: a função de ilustração (mero acompanhamento que reduplica conteúdos), de ostensão (espaço dominado pela imagem e que resiste à anatomia do texto), de legenda (suporte ao serviço de um discurso), de evocação (recurso a iconografias muito culturalizadas), de referência (denotação do ‘topic’ do post) e de paródia (desfasamento criado entre várias escritas).
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Evocação e ostensão simultâneas: sem título, Sábado, 27 de Maio de 2006
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Em Kant e L´Ornitorinco (1997), U. Eco interpretou a noção de ícone de C. Peirce (que, por sua vez, se divide em diagrama, metáfora e imagem) de acordo com duas possibilidades: uma de natureza mais cognitiva e uma outra que o pragmático norte-americano identificou com a disponibilidade de qualquer coisa a “incastrasi” noutra coisa. No primeiro caso, sem querer aqui aprofundar a questão, está em causa a aptidão para estabelecer semelhanças tendo em vista comunicar ou transmitir algo (a chamada “likeness”). No segundo caso, trata-se de um tipo de entendimento que não deixa o espanto por mãos alheias. Por exemplo, quando, em 1779, um dos últimos ornitorrincos chegou à Europa e a sua forma e funções não “encaixavam” em nada existente e conhecido, logo os cientistas ingleses o “encaixaram” nas referências mais próximas e contíguas de que dispunham (ajustaram o novo dado à ‘enciclopédia’ existente). O mesmo aconteceu a Montezuma quando percepcionou um cavalo pela primeira vez e aos intérpretees da NASA quando receberam os primeiros sinais de Plutão.
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Evocação e ostensão simultâneas: Modigliani, post assinado por Ana Roque
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Os processos icónicos, num meio altamente permeável à inscrição de imagens – como é a blogosfera -, tendem a amplificar estes atributos: de um lado, a inevitabilidade dos eixos de semelhança (a “likeness”) visando a clareza de expressão; do outro lado, o uso - por vezes indiscriminado - de imagens como forma de adequação a um novo meio ainda não totalmente descodificado (a disponibilidade da linguagem criada pelo blogger, mais concretamente pelo seu sujeito textual, para “incastrasi”).
Creio que serão poucas as ilustrações, as ostensões, as referências, as legendas e as paródias presentes em imagens da blogosfera que não sejam atravessadas por estes dois atributos. Eles reflectem, afinal de contas, a procura expressiva que está, hoje em dia, a percorrer a blogosfera, num caminho em tudo pararelo, por exemplo, ao dos pioneiros da lanterna mágica, da fotografia, ou do cinematógrafo. O holandês Huijgens e os franceses Nicéphore Nièpce, irmãos Lumière ou Méliès inventaram a suas escritas do mesmo modo: criando dispositivos de linguagem que tornavam verosímeis as suas mensagens, adaptando-as, ao mesmo tempo e a pouco e pouco, aos segredos que os novos sistemas ainda comportavam. No fundo, eles aplicaram intuitivamente e de modo complementar estes mesmos atributos de natureza icónica: “likeness” e “incastrasi”.
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Ilustração: O poder da mente, post ficcional
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Como P. Sloterdijk escreveu num livro recente sobre o terror (2003), desde os alvores do século passado que “chamamos meio ambiente a todos aqueles valores integrais e decisivos que não podemos abandonar”. O recurso à imagem cresceu de facto, ao longo de todo o século XX, com a força de um valor que ia integrando os mais diversos legados expressivos (até chegar a fundir arte e quotidiano, publicidade e estética, política e marketing, média e simbólica). A imagem que, nas origens mitológicas, era um desdobrar do próprio homem em figuras arquetípicas (deuses, lendas, inscrições iconológicas) acabaria assim por encontrar, na transição da era mecânica para a era tecnológica, uma integração plena: o meio ambiente - ou o globário - por excelência.
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Paródia: Bazar, ou um post sobre a feira do livro, a idade, manuais e epifanias
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A metamorfose digital foi e está a ir muito mais longe, transformando a ideia patrimonial de imagem num processo tão permanente quanto descontínuo. A imagem é hoje – também na blogosfera - uma simples paragem do acelerado fluxo global: um momento que pertence a outros momentos, na sua desintegração mais incorpórea. Mas ‘está lá’: sinalizando a ilusão da presença fotográfica, dando a ver simultaneamente o representado e a representação (a figura e a operação que a figura) e tornando claro que qualquer sistema funcional é hoje inevitavelmente ambíguo (daí que, nos blogues, uma imagem transcenda sempre as funções aparentemente óbvias que desempenha).
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Ostensão: Mundo de aventuras XXXVI, um post do Klepsidra
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A blogosfera está a tornar-se num curioso desafio para o sentido das imagens, na medida em que (devido ao seu cariz individualizado e activo) é um meio onde a imagem se processa como se procurasse um lugar próprio. Este protocolo por resolver faz parte da demanda expressiva do meio blogosférico e não deixa de ser um jogo diário fascinante. No fundo, o impróprio e o próprio coabitam no mesmo espaço, que é o espaço da imagem, como se a superação da famosa frase de Tomás de Aquino – Duplex est modus loquendi - estivesse neste momento a acontecer de vez na casa sem paredes que é a blogosfera. A metafísica, como modo de perpetuar o poder, já teve melhores dias. A encenação une, hoje em dia, na blogosfera o palco e toda a ressonância activa e plural do backstage.