segunda-feira, 22 de maio de 2006

O "tom" dos blogues - 13

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Um dos traços (geralmente polémicos) da expressão artística contemporânea diz respeito à banalização. No entanto, uma arte pobre (materiais elementares, fusão com o quotidiano, instalação pura, inscrição minimal na paisagem, etc.) pode ser uma arte muito enraizada no dia a dia e, nessa medida, necessária, fértil e sobretudo autêntica. Do ponto de vista da tradição sacerdotal e quase sacralizada da arte, que fez vida do romantismo para cá (com mais ênfase para o legado formativo, expressivo, reducionista, mas não menos para a chamada arte útil, para a pop e para outros legados de tipo social), esta expressão contemporânea da banalidade é ainda, muitas vezes, observada como uma excrescência dos tempos que correm.
Não partilho desta angústia que é própria de quem olha para o presente com uma perspectiva que já não lhe pertence. Nas últimas duas décadas, um horizonte fixo de referências com mais de dois séculos de idade foi-se descolando da experiência quotidiana, do mesmo modo que a hipertecnologia veio atribuir ao presente novos significados. A banalidade de que tanto hoje se fala é o resultado da reordenação de expressões e linguagens num quadro de mudanças que é no mínimo profundo. Esta pulverização expressiva atravessa um conjunto vastíssimo de territórios e não se limita naturalmente ao que continua a ser (esquematicamente) designado por perímetro artístico.
Os campos hoje em dia contaminam-se, confundem-se e movem-se. A blogosfera é um desses campos que cresceu e apareceu na turbulência que reflecte e está a edificar o presente comunicacional. Subitamente, quebraram-se as paredes que limitavam os géneros e as legitimações expressivas, ao mesmo tempo que se passaram a ouvir vozes que antes não dispunham de meio onde enquadrar a sua expressão própria. Todos conhecíamos já a tradição espistolográfica, enciclopédica e opinativa que era complementada com modelos fixados para a extroversão do intimismo (diário, crónica, memórias, etc.). Contudo, a blogosfera (ao lado de outros meios inovadores) está a proporcionar a enunciação de tipos expressivos que não se enquadram já em nenhum destes moldes que parecem ter sempre existido.
Esta emergente – e às vezes excessivamente eufórica – explosão de vozes tem arrastado consigo errância, procura e sobretudo afirmação admirada. Do seu nada, o anonimato encarnou, encorpou e descobriu-se no vertiginoso papel de autor e de editor, na confluência de olhares que ainda ontem dividia o imenso fosso entre auditório e emissor. Desaparecido o palco que os afastava, removida a crisálida que envolvia a voz, transposto para a rede o desejo de “dizer”, eis que a novíssima panóplia desabrochou. E com ela, entre ela, também com ela, a expressão de alguma banalidade. Mas não se reduza a blogosfera àquilo que se traduz, de modo simplista e apressado, por banalidade. Até porque, para muitos, a banalidade é uma manifestação de deriva e desvario que espelha a descida do ‘céu das expressões’ à ‘poeira terrena dos mortais’. A dessacralização expressiva ‘em curso’ seria assim comum a muito do que atravessa a arte (dita) pobre e a blogosfera. Depois de um longo tempo em que as referências eram autores, vias consagradas e valores pesados e centrais, hoje cada post encarnaria em si e por si uma referência, a sua própria referência: perdida e ganha no novo éter das expressões à procura de rosto.
A “consciência do nosso tempo” é uma ideia moderna e tem atrás de si uma longa tradição. No entanto, o que a torna diferente na actualidade é a dissociação entre horizonte e presente: ambos parecem fundir-se num cenário indefinido de simulações e efeitos (pixels de pixels). As novas formas de perspectivar estão intimamente ligadas ao instantanismo tecnológico e às múltiplas formas paródicas que o desenham no dia a dia nos mais variados campos expressivos, entre eles a blogosfera, os novos designs e toda a esteticização generalizada do mundo. Tal como o poeta Vasco Gato escreveu: “não tem anatomia,/ olhos apenas”. Estamos, pois, num novo patamar (como se existisse Leibniz sem Deus). Confundi-lo com banalidade seria quase crime.