sexta-feira, 19 de maio de 2006

O "tom" dos blogues - 11

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Em Março passado, com o objectivo de proteger a figura do jornalista clássico da ventania interactiva dos blogues – e da rede em geral – o ilustre blogueador Alexandre Soares Silva propôs – com o seu habitual halo paródico - um leque de regras de “polémica”. Estas regras não deixam de ser interessantes no que reflectem da tensão clara que existe, hoje em dia, entre as expressões que a blogosfera procura para si e a bem mais tradicional e até unívoca gramática expressiva que sempre fez um jornalista ser um jornalista:
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“1) O golpe do “Não Generalize”- Uma das coisas que as pessoas deveriam ter em mente, quando debatem com um jornalista polêmico, é que ele sabe que existem exceções. Acredite, ele sabe. Não fique apontando o óbvio para ele, que é muito rude. Não fique dizendo: “Nem todo tenista é burro”. Ele sabe. Talvez até conheça dois ou três que não são burros. A questão é que é muito menos chato escrever “todos os tenistas são burros” do que escrever “há um grande número de atletas profissionais (não só tenistas, é claro) que não são assim, digamos, muito inteligentes. Mas faço questão de frisar que há exceções”. Portanto, regra número um: generalizar é divertido. Deixe o generalizador em paz. Ele sempre sabe que há exceções.”
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É difícil não citar toda a primeira regra (como as restantes). Ela é indutiva e, por razão disso mesmo, carbura do exemplo para a premissa perfeita: deixe que se generalize, deixe que se possa intuitivamente abarcar toda a floresta sem ter que ancorar o verbo na resina de cada árvore. Deixe o vitalismo libertar-se e contenha, caro sujeito blogosférico, o seu polposo e voraz apetite da interacção.
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“2) O golpe do “Não queira comparar” – Ah, esse é velho, e muito popular. Não se pode fazer comparação alguma sem que alguém diga: “Você está querendo comparar Jesus Cristo com Agnaldo Timóteo? Trotsky com Sharon Stone? Eliot com Cacaso?” Meu Deus, e daí? Sim, estou comparando. Comparações só podem ser feitas entre coisas diferentes. Exatamente para ver a diferença. Você compara uma melancia com a lua e conclui que uma é um bocado maior do que a outra. Mas você não compara uma melancia com precisamente a mesma melancia. É preciso ao menos que seja outra melancia, o que significa uma melancia diferente. É para isso mesmo que comparações servem! “Não que eu queira me comparar com Van Gogh, mas...” Mas o quê? Se compare, idiota!”
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Esta segunda regra é a regra da latitude. Se toda a retórica funciona por pares, tal como os hemisférios do cérebro (é a metonímia e a súbita contiguidade, é a metáfora e a semelhança subtil, é a alegoria e a simetria narrativa, é a parábola e a doxa da analogia, é a hipérbole e a miragem do gigantão, etc.), logo o espectro da comparação se torna na ginástica primordial de toda a expressão dos humanos. Daí que, ao comparar, nem que seja a raiz do abeto com o olhar de Proserpina, o cidadão interactivo da blogosfera ganhe mais em eclectismo do que em superar a sua angústia expressiva. O Alexandre, mais uma vez, tem toda a razão.
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“3) O golpe do Ataque Ad Hominem – O bom e velho xingamento gratuito. Nem é preciso explicar porquê isso não deveria ser feito. O texto é sobre matemática, digamos – e o leitor desqualifica o autor porque, segundo fontes confiáveis, “ele é corcunda”. Que feio, que feio. Esse tipo de recurso só é válido, é claro, se o xingamento for ao menos engraçado – alguma piadinha sobre corcundas e áreas cônicas, ou algo assim. Mas essa piada tem que ser um pouco elaborada. Um xingamento puro e simples, ou um xingamento com sarcasmo puro e simples, mas sem um toque de ironia, é um comportamento digno de labregos.”
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Pois é, a ironia. A ironia em vez do “gajo” que é ‘semiótico da Moviflor’ (uma máxima extraordinária publicada há dias numa ilustre caixa de comentários). Por outras palavras: conseguir avançar com desmedida sinceridade e mesmo assim dizer algo ligeiramente diverso do que se quereria comunicar é, de facto, arte pouco “labrega”. No entanto, ela até faz de certo modo escola, hoje em dia, no elevadíssimo milieu tribuno dos parlamentos regionais e das Assembleias Municipais. Só que nem sempre é requintado o modo como o locutor dá a ver o paradoxo ou a contrariedade que desejaria veicular. A coisa sai-lhe atabalhoada, com tons vernáculos e toscos, sobrepondo-se a toada alarve ou de elefante à finura felina que conduziria à acidez da limonada ou à crítica fina. A fulanização e o anonimato andam muitas vezes de mão dada na blogosfera: o que se expande em certos submundos da atmosfera terá na blogosfera o nome de ‘terrorismo do tom’.
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“4) O golpe do “Explique-se Melhor”- Também conhecido como o golpe do “Hein?”, ou “Não entendi”, ou “Fale Sério”, ou “Baseado em Quê Você Diz Isso?”. Não há piada ou frase de espírito ou boutade ou witticism que resista a isso. É como aquele sujeito que pede para que lhe expliquem a piada. Por favor, não peça ao autor da frase espirituosa que justifique sua afirmação em 500 palavras ou menos, usando trechos de jornais de época e bibliografia selecionada. Esse é um dos golpes mais hediondos do manual.”
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O público gosta de ser meta-comprensivo. Nem sempre por não entender, mas porque a própria repetição explicativa coloca em cena o prazer de uma desforra sempre e só imaginária. Enquanto o oponente potencial repete o seu excurso, ele, o pobre adepto da repetição, fica a olhá-lo e imagina – às vezes sem disfarçar - a frescura da guilhotina naquele pescoço dócil, a vibração dos volts na cadeirinha eléctrica e a força da gravidade que o embalaria pelo precipício depois de empurrado com mãos de seda. O público não gosta do laconismo, do texto acabado e do remate conclusivo. O público gosta de intermináveis relatos, de conversas picantes e cerejas e mais cerejas. É por isso que, na blogosfera, a interacção é insaciada: porque, justamente, o texto não tem fim, porque os posts jamais se esgotam e porque a actualidade é sempre a actualidade, removido que foi há muito o futuro e endeusada que foi há muito a amnésia generalizada.
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“5) O golpe do “Debate”- Ah, a mania do “debate”. Não basta a alguém escrever um texto brilhante – na Internet, ele tem que “debater” cada ponto de vista, sob o risco de ser considerado um idiota que não sabe o que diz. Não basta que o regime de governo seja democrático; é preciso que os sites sejam democráticos, com textos democráticos e comentários democráticos, em que leitores democráticos interpelam democraticamente as boutades do escritor democrático até levá-lo a um democrático suicídio. É como se Ibsen tivesse escrito as suas peças apenas para “debater” com qualquer badameco que se sentasse na sua mesa de café em Cristiânia. Ou Oscar Wilde tendo que “debater” seus ensaios com um estudante de sociologia de Goiás. “Não fuja, não fuja! Você não terminou de explicar como fica aquela sua frase sobre a classe média à luz dos conceitos de Durkheim!”
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Aqui é que o texto se confunde com o texto: de facto, uma teia é feita de linhas que se cruzam e que se confundem no produto que parece final. Só que, um dia, a teia desfaz-se e já não se sabe onde a dita terá começado e acabado. O texto – quanto mais o texto de um post - também não é o pontão de um porto onde apenas acosta um casco e um porão de cada vez. Não há nada a fazer aqui: se o aventuroso jornalista terminava dantes a sua tarefa na última linha do último artigo, antes aindade de escalar aos bares do Bairro Alto, hoje o blogueador está perdido como um flanêur sem destino. Não há (praticamente) regra que lhe valha. É por isso, caro Alexandre, que o debate acaba por ser essa coisa bizarra que faz de Ibsen e de Wilde dois marinheiros sôfregos face à impaciência de outros tantos biliões de anónimos marinheiros que com eles comentam o fim do Princípio de Peter. As ondas batem em todo o lado, tal como o texto jorra na omnipresença do debate e da interacção. Não há mesmo nada a fazer: a blogosfera chegou de vez para que a permuta se passe a fazer para lá de um ‘de dentro do texto’ e ‘de um de fora do texto’: todas as Goiás do globário estão abruptamente ao mesmo nível, como se tudo se passasse na instantaneidade do agora-aqui, do hoje e do já.
Deixei o link do post de referência para o fim, já que, misteriosamente (ó Blogger, por que nos abandonas?), o mesmo inibe e apaga tudo o que após ele se escreve: clique, pois, aqui.