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O artigo do The New York Times mais lido no passado mês de Fevereiro foi "White House Knew of Levee's Failure on Night of Storm" de Eric Lipton, que desenvolveu as possíveis negligências do estado face à tragédia de Nova Orleães. O segundo artigo mais lido no mesmo período obedeceu a idêntica ligação entre as lógicas do poder e o controlo do acidental. Este segundo artigo, publicado a 14 de Fevereiro, "Fellow Hunter Shot by Cheney Suffers Setback" da autoria de Elisabeth Bumiller e Anne E. Kornblut, dá conta do que aconteceu ao advogado Harry M. Whittington. Primeiro foi alvejado por Dick Cheney num acidente de caça no Texas e, dois dias depois, foi vítima de um ataque de coração (sem consequências de maior).
O tema, insidioso e naturalmente aberto a todo o tipo de especulações, tornou-se de imediato numa espécie de clímax de curiosidade. Confrontado com o assunto em conferência de imprensa, o porta-voz do presidente reagiu mal à desmedida insistência dos jornalistas e concluiu com algum embaraço: "If you want to continue to spend time on that, that's fine", mas agora "We're moving on to the priorities of the American people".
As prioridades que motivam o interesse público são muitas vezes indescortináveis e nem sempre se confundem com o desígnio que os média ocupam (os média têm sempre - já não dia a dia, mas momento a momento - um espaço em branco por preencher e por tematizar). No entanto, o olhar do grande público tem a tendência a centrar-se quase sempre no mistério que se intromete entre a ordem do acontecimento (e do acidente) e a esfera dos poderes (esse palco evoluiu nos últimos séculos da imagem do Trono Celeste para os reposteiros das Casas Brancas). Há cinco séculos, a palavra latina "curiositas" retinha ainda significados com origem em fontes patrísticas, quer de S.Agostinho, quer de Cassiano. E. Peters situou-os no campo da “indagação intelectual interdita e dos vícios como a incúria ou o excessivo interesse pelos negócios alheios”. Hoje, a curiosidade já não é aparentemente sinónimo de heresia ou de apostasia. Contudo, o actual e permanente jogo dos briefings políticos, as estatísticas mensais de leitura e o próprio modo como os média derivam dia a dia de foco de interesse acabam por reflectir uma certa permanência de coisas muito antigas.
As pessoas adoram o insondável, o mistério, ou tão-só o que se mostra e oculta ao mesmo tempo. Já o médico hipocrático passava facilmente do visível ao invisível, na medida em que aquilo que "escapava à visão dos olhos era apanhado pela visão do espírito" e aquilo que "era invisível para o olho" era "visível para a razão". Encenações, cenas de caça, inundações, irritações ou interdições, tanto faz: uma permanência ou um poço sem fundo. Hoje em dia, a mitologia do "tempo real" sugere-nos que tudo está à nossa vista a todo o momento, como se não existissem "prioridades". Nada mais falso. Essa simulação global diz-nos antes de mais que as cenas de tiro da corte e os serões de província são uma coisa e a imagem que fabrica a própria simulação é uma outra coisa bem diferente. De outro modo, por que razão o artigo de Kornblut e Bumiller teria sido tão invulgarmente desejado?